... a defesa das ideias


Às quartas 19/09/2001
José Duartepor José Duarte
(Professor Adjunto do Departamento de Tecnologias
de Informação e Comunicação da ESE
)


Pai, tenho computadores na minha escola!

Três histórias ...

Bruno é uma criança negra, filho de pais cabo-verdeanos que vieram para Portugal há duas décadas. Tem 13 anos e frequenta o 6º ano de uma escola básica em Setúbal. Nunca tinha visto um computador e muito menos trabalhado com ele. Hoje corresponde-se por correio electrónico com jovens brasileiros graças a um projecto que visa a construção de histórias interactivas que decorre sob a responsabilidade de dois professores da escola e faz parte dos seus trabalhos escritos utilizando o processador de texto.

Dina tem 15 anos e frequenta o 10 º ano de Humanidades de uma escola secundária no Barreiro. Filha de um engenheiro e de uma professora, tem computador em casa desde a primária e mantém com ele uma relação de familiaridade, jogando, desenhando e escrevendo poemas que é um dos seus hobbies. No ano passado, a sua professora de Matemática deu-lhe a conhecer um programa de Geometria Dinâmica com o qual desenvolveu algumas actividades de resolução de problemas nas aulas, que contribuíram para melhorar a sua imagem da disciplina.

Marco é um jovem que sempre detestou a escola. A custo concluiu a primária e hoje, com 12 anos, frequenta o 5º ano de escolaridade numa escola básica de Setúbal. Tem negativas na maioria das disciplinas e acredita pouco nas suas capacidades. Graças a um projecto iniciado por um grupo de professores, inscreveu-se como aluno monitor no Centro de Recursos da sua escola e hoje presta apoio aos seus colegas, auxiliando-os quando estes elaboram os seus trabalhos em computador.

Computadores na escola, para quê?

Para o Bruno, a escola deu-lhe a oportunidade de acesso a uma ferramenta essencial no quotidiano da sociedade de informação. A iniciativa do Ministério da Ciência e Tecnologia de colocar um computador multimédia com ligação à Internet em cada escola, constituiu um passo na abertura da escola ao mundo, com a criação de páginas de apresentação e relato da ‘vida da escola’ e permitindo o desenvolvimento de projectos de intercâmbio entre comunidades distantes, em particular as lusófonas.

A Dina que optou pelas Humanidades para ‘fugir’ à Matemática, nunca tinha tido oportunidade de ver a geometria interactiva. Embora já tivesse um contacto desde criança com vários programas de computador, nunca se tinha apercebido que este, para além de constituir uma ferramenta para elaboração de trabalhos, pode representar uma mais valia na visualização de conceitos abstractos e na percepção de propriedades de figuras geométricas que apenas com o quadro e o giz se tornam maçudos e de difícil entendimento.

Marco é nesta história o representante de uma classe de jovens que passam ‘obrigados’ pela nossa escola obrigatória. Desmotivados e com uma fraca auto-estima, aguardam em cada ano pela benevolência dos professores e do sistema de avaliação para transitarem ao ano seguinte. No entanto, a sua co-responsabilização num projecto em que simultaneamente aprendem mais sobre os computadores e a Internet e por outro lado desenvolvem uma função com utilidade social (apoio aos colegas, mesmo aos bem sucedidos no desempenho escolar) valoriza o seu trabalho e a si próprios, traz-lhes uma significativa melhoria da sua auto-imagem e atribui um sentido à sua vida na escola.

Um novo papel para os professores

Em todas estas histórias existe um traço comum: o grupo de professores voluntários que perceberam o potencial desta ferramenta que é o computador, para incentivar os processos de descoberta, desenvolver a autonomia e facilitar a comunicação e o desenvolvimento de projectos colaborativos.

Existem alguns traços característicos destes profissionais que fazem uma ‘leitura’ aberta da escola como um espaço pedagógico onde decorrem aulas e diferentes actividades culturais que dão corpo àquilo que se considera o currículo escolar. São normalmente professores com uma boa formação científica e pedagógica, com alguns conhecimentos de informática, com um elevado grau de empatia com os alunos, abertos a ideias novas e com uma disponibilidade para a inovação em educação. Mais do que em conteúdos, acreditam no desenvolvimento de competências como ‘saberes em acção’ ou saberes que se usam na resolução de problemas e situações diversas. Reconhecem e valorizam nos programas das disciplinas diferentes objectivos que vão desde os conhecimentos, às capacidades, atitudes e valores.

Constituem normalmente um grupo activo que pretende dinamizar a escola, ‘dar vida’ aos diferentes espaços pedagógicos existentes (Bibliotecas, Mediatecas, Centros de Recursos, Clubes disciplinares e interdisciplinares, etc.), procurando integrar nessa dinâmica mais colegas e alunos.

Este grupo tem crescido de forma moderada, uma vez que o processo de apropriação das TIC de modo a torná-las um instrumento valorizador das práticas pedagógicas é, ele mesmo, um processo lento com diferentes graus de consecução. Maioritariamente formados ainda numa escola de quadro e giz, os professores têm desenvolvido nos últimos anos um esforço de actualização ao nível das tecnologias de informação e comunicação (TIC), integrando-se em projectos nacionais como o Projecto MINERVA ou o Programa Nónio – Século XXI e em programas de formação nesta área que têm vindo a ser desenvolvidos por Centros de Formação, Universidades e Escolas Superiores de Educação.

Mas esta formação não pode ser entendida como uma reciclagem ou mais uma técnica. Mais do que conhecer a tecnologia, importa equacionar o que fazer com ela, nomeadamente como a tornar um elemento natural e enriquecedor do quotidiano escolar. E isso acontece preferencialmente em processos de formação que decorrem das necessidades das escolas e agrupamentos, têm em conta a sua dimensão técnica e pedagógica e permitem uma reflexão sobre as práticas profissionais.

Contar com os pais

Muitos pais com a intenção de ‘darem o melhor’ aos seus filhos, oferecem-lhes CD-ROMs que facilitam a aprendizagem da tabuada ou que visam a preparação dos alunos para os testes, integrando ‘baterias’ de perguntas, às quais associam imagens atractivas e som, pensando assim conseguir a atenção dos jovens. Tentam com isso inverter a tendência para que eles não percam todo o seu tempo a jogar em frente ao computador. Mas estarão os pais em condições de avaliar os diferentes aspectos pedagógicos que estão presentes numa peça de software, seja ele um jogo ou um programa dito educativo ?

Basta percorrermos os corredores de um grande hipermercado para observarmos as centenas de produtos (ou capas?) deste tipo que nos oferecem para todos os gostos e idades. No entanto, muitas vezes por trás deste software visualmente atractivo, esconde-se uma grande pobreza de ideias, encarando as crianças como uma ‘máquina de respostas’ ou como um receptáculo a estimular com bons grafismos.

Seymour Papert, professor e investigador americano no MIT, descreve-nos de forma exemplar no seu livro The Connected Family[1], a importância dos pais desenvolverem uma consciência crítica sobre o software educativo, que o mesmo é dizer sobre o que deve ser a aprendizagem. O autor chama-nos a atenção para a importância de desenvolver aquilo que designa como uma cultura familiar de aprendizagem, tentando ver o computador como um instrumento de partilha de interesses comuns e de projectos em conjunto e não como um ‘inimigo’, factor de isolamento do jovem e de desunião familiar.

O futuro para as tecnologias na educação

O Bruno, a Dina e o Marco, por mérito seu, mas também pela iniciativa dos professores que criaram no quotidiano atribulado de problemas da escola pública condições para tal, constituem alguns exemplos de ‘boas-práticas’ que precisam ser divulgadas. Tenhamos consciência que estamos a falar de episódios esporádicos que não constituem regra nas escolas. Pelo ainda reduzido número de computadores existentes, mas também pela falta de uma formação contínua de professores integrada nas práticas quotidianas, apoiada e reconhecida.

Não basta equipar as escolas com computadores, ligá-los em rede e fornecer acesso à Internet. É decisiva a disponibilização de recursos humanos com formação técnica na área das TIC para apoio e manutenção das redes, mas também de equipas interdisciplinares que constituam um suporte ‘no terreno’ capaz de dar continuidade aos cursos e oficinas de formação, apoiando os professores nas primeiras ‘experiências’ nos computadores com os seus alunos, promovendo uma reflexão permanente sobre as práticas e as utilizações adequadas das TIC, numa perspectiva de desenvolvimento curricular.

Às instituições públicas de formação de professores compete responder a este desafio com uma permanente actualização curricular dos cursos de formação inicial, tendo em conta os novos desenvolvimentos das TIC e a ‘construção’ negociada com as escolas básicas e secundárias de programas de formação contínua e projectos nesta área.

A divulgação de exemplos de boas práticas de utilização das TIC nas escolas, a par da produção de materiais curriculares de apoio à utilização das TIC em diferentes disciplinas, devem constituir uma preocupação central destas instituições.

Mas só teremos mais Brunos, Dinas e Marcos, assim como só faremos crescer o grupo dos profissionais com funções de animação e dinamização nesta área, se a investigação acompanhar o processo de disseminação das TIC nas escolas. É ela, em última análise que marcará as linhas através das quais a formação de recursos humanos progredirá. Uma investigação na acção, centrada em equipas que integrem os professores dos diferentes níveis de ensino.


[1] Com uma tradução (A Família em Rede) recentemente editada pela Editora Relógio d’Água