... a defesa das ideias


Às quartas 24/10/2001
Ana Maria Pessoapor Ana Maria Pessoa
(Professora do Departamento de Comunicação da ESE)


Ainda se podem defender causas...

Neste início de mais um ano lectivo no Ensino Superior Politécnico/ Universitário (seja ele público, privado ou concordatário) certos temas como os orçamentos, as vagas, as médias de entrada... poderiam fazer o conteúdo deste artigo;  optou-se, porém, por deixar aqui duas ou três ideias sobre a “tradição”(?) que manda(?) que os(as) caloiros(as) sejam submetidos à praxe, entendida aqui como rito de iniciação que marca a entrada numa sociedade e, que tal como outros (ex: excisão), pode ser mais ou menos doloroso. Aproveita-se também para ligar a questão da defesa dos direitos, liberdades e garantias dos(as) cidadã(o)s à recente crise em que mergulhou o mundo ocidental.

O ritual da praxe, iniciado em Coimbra (durante séculos o único bastião do Ensino Superior em Portugal), vai ser posto em causa após o 25 de Abril de 1974; será, porém, ressuscitado nos anos 80, sobretudo por parte de certas Escolas do Ensino Superior Politécnico ou de Universidades privadas que procura(va)m reconhecimento social.

A prática/institucionalização da praxe tem uma forte componente machista e misógena (vejam-se, a título de exemplo, alguns dos textos das canções das tunas...) para além da defesa de valores como a submissão, a intolerância ou a prepotência, entre muitos outros da mesma área repressiva. Talvez seja interessante saber que o “direito de permanecer calado”, “o direito de ser ignorante”, “o direito de respirar de vez em quando”, “o direito de falar quando ninguém está a ouvir” e “o direito de não ter direitos” são alguns dos “dez mandamentos” do caloiro. À praxe juntam-se, quase no fim do curso, outros rituais como a queima das fitas e a bênção das pastas.

Não está aqui em causa a defesa ou o ataque das praxes mas, tão só, colocar as questões que permitam uma outra forma de olhar este tema. É evidente que se defende que colegas ajudem outros(as) a sentirem-se integrados(as) nas instituições de Ensino Superior. É evidente porém que não se aceita a humilhação, o vexame e o domínio do mais forte(?) sobre o mais fraco. Quem reprime o(a) outro(a) numa circunstância destas também o fará em situações de poder? O povo terá razão quando diz:”Não peças a quem pediu nem sirvas a quem serviu”?

Certo dia de um Outubro passado esteve escrito na parede da porta principal da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, ali na Av.de Berna, um slogan que dizia: “Praxe: Não libertes o cabrão que há em ti”. Estava assinado por uma determinada força política e, na altura, parecia exagerado; só o foi até ao dia em que, em época de praxes, uma aluna, muito tímida no seu primeiro ano, vexava sem apelo nem agravo outra que acabara de entrar...

Estas linhas, a propósito de uma prática que se instalou no Ensino Superior, no início de cada ano lectivo podem, de alguma forma, ligar-se a uma reflexão sobre o que se alterou neste mundo após o dia 11 de Setembro, a saber: que espaço nos ficou, neste mundo global, para estar noutro sítio que não seja o “quem não está por nós, é contra nós”? Defende-se a liquidação das liberdades e das garantias dos(as) cidadã(o)s? Onde está a educação para a cidadania que é suposto praticar em cada democracia? Nesse dia foram também enterradas as nossas crenças e os nossos valores? Estamos nós a ser cúmplices desse enterro?

A resposta à crise(?) em que vive o mundo ocidental só pode ser dada como preconiza Oscar Mascarenhas no texto intitulado “O privilégio de morrer por uma causa” (DN 26/09/01, p. 14). O autor defende, de forma irrepreensível, que “...se um terrorista está disposto a morrer pela sua ideia bárbara, há que dizer que os restantes cidadãos estão dispostos a morrer para manter a convivência cívica não vigiada. Porque só vale a pena viver sem medo”.  Esta posição não é fácil de assumir; porém, é obrigatório que a Escola e a sociedade em geral se capacitem de que a liberdade e a alegria/direito de viver não podem ser postas em causa porque há minorias que não sabem como se lida hoje com as antinomias liberdade/autoridade, direitos/deveres e com outros valores, em termos mundiais ou a nível nacional? Essa reflexão é ainda possível neste mundo?