por
Ana Maria Pessoa
(Professora
do Departamento de Comunicação da ESE)
Ainda
se podem defender causas...
Neste
início de mais um ano lectivo no Ensino Superior Politécnico/
Universitário (seja ele público, privado ou concordatário)
certos temas como os orçamentos, as vagas, as médias
de entrada... poderiam fazer o conteúdo deste artigo;
optou-se, porém, por deixar aqui duas ou três
ideias sobre a “tradição”(?) que manda(?) que os(as)
caloiros(as) sejam submetidos à praxe, entendida aqui
como rito de iniciação que marca a entrada numa sociedade
e, que tal como outros (ex: excisão), pode ser mais
ou menos doloroso. Aproveita-se também para ligar a
questão da defesa dos direitos, liberdades e garantias
dos(as) cidadã(o)s à recente crise em que mergulhou
o mundo ocidental.
O
ritual da praxe, iniciado em Coimbra (durante séculos
o único bastião do Ensino Superior em Portugal), vai
ser posto em causa após o 25 de Abril de 1974; será,
porém, ressuscitado nos anos 80, sobretudo por parte
de certas Escolas do Ensino Superior Politécnico ou
de Universidades privadas que procura(va)m reconhecimento
social.
A
prática/institucionalização da praxe tem uma forte componente
machista e misógena (vejam-se, a título de exemplo,
alguns dos textos das canções das tunas...) para além
da defesa de valores como a submissão, a intolerância
ou a prepotência, entre muitos outros da mesma área
repressiva. Talvez seja interessante saber que o “direito
de permanecer calado”, “o direito de ser ignorante”,
“o direito de respirar de vez em quando”, “o direito
de falar quando ninguém está a ouvir” e “o direito de
não ter direitos” são alguns dos “dez mandamentos” do
caloiro. À praxe juntam-se, quase no fim do curso, outros
rituais como a queima das fitas e a bênção das pastas.
Não
está aqui em causa a defesa ou o ataque das praxes mas,
tão só, colocar as questões que permitam uma outra forma
de olhar este tema. É evidente que se defende que colegas
ajudem outros(as) a sentirem-se integrados(as) nas instituições
de Ensino Superior. É evidente porém que não se aceita
a humilhação, o vexame e o domínio do mais forte(?)
sobre o mais fraco. Quem reprime o(a) outro(a) numa
circunstância destas também o fará em situações de poder?
O povo terá razão quando diz:”Não peças a quem pediu
nem sirvas a quem serviu”?
Certo
dia de um Outubro passado esteve escrito na parede da
porta principal da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
da Universidade Nova de Lisboa, ali na Av.de Berna,
um slogan que dizia: “Praxe: Não libertes o cabrão que
há em ti”. Estava assinado por uma determinada força
política e, na altura, parecia exagerado; só o foi até
ao dia em que, em época de praxes, uma aluna, muito
tímida no seu primeiro ano, vexava sem apelo nem agravo
outra que acabara de entrar...
Estas
linhas, a propósito de uma prática que se instalou no
Ensino Superior, no início de cada ano lectivo podem,
de alguma forma, ligar-se a uma reflexão sobre o que
se alterou neste mundo após o dia 11 de Setembro, a
saber: que espaço nos ficou, neste mundo global, para
estar noutro sítio que não seja o “quem não está por
nós, é contra nós”? Defende-se a liquidação das liberdades
e das garantias dos(as) cidadã(o)s? Onde está a educação
para a cidadania que é suposto praticar em cada democracia?
Nesse dia foram também enterradas as nossas crenças
e os nossos valores? Estamos nós a ser cúmplices desse
enterro?
A
resposta à crise(?) em que vive o mundo ocidental só
pode ser dada como preconiza Oscar Mascarenhas no texto
intitulado “O privilégio de morrer por uma causa” (DN
26/09/01, p. 14). O autor defende, de forma irrepreensível,
que “...se um terrorista está disposto a morrer pela
sua ideia bárbara, há que dizer que os restantes cidadãos
estão dispostos a morrer para manter a convivência cívica
não vigiada. Porque só vale a pena viver sem medo”.
Esta posição não é fácil de assumir; porém, é
obrigatório que a Escola e a sociedade em geral se capacitem
de que a liberdade e a alegria/direito de viver não
podem ser postas em causa porque há minorias que não
sabem como se lida hoje com as antinomias liberdade/autoridade,
direitos/deveres e com outros valores, em termos mundiais
ou a nível nacional? Essa reflexão é ainda possível
neste mundo? |