por
José Victor Adragão
(Professor
da ESE)
O
que vale um dicionário...
Nascida em
1779, pela mão do Duque de Lafões, logo quis a Academia
(Real) das Ciências de Lisboa, que tinha como objectivo
“o adiantamento da instrução nacional, a perfeição
das ciências e das artes”, editar um dicionário de
Língua à imagem do que tinham feito as suas irmãs europeias.
O primeiro volume desse dicionário foi publicado em 1793
e correspondia à letra A. Era um bom início. Mas os anos
foram-se passando e, como diziam os críticos, os académicos
“quedaram-se em azurrar” (tal era, de facto,
a última palavra desse famigerado primeiro e único tomo
do dicionário...).
Em
1976, com as correcções que o tempo impunha, de novo se
publicou a mesmo letra A.
Só há pouco tempo, nos últimos dias do século XX,
é que tivemos direito à obra completa, 207 anos depois
do seu início.
Esta
edição, saudada com alegria por quantos a ela estiveram
ligados, motivo de condecoração para o seu principal responsável
e objecto de controvérsias acesas e animadas, merece que
se façam alguns comentários. Porquê tanto alarido? Não
tínhamos outros dicionários? O que vale este dicionário?
Em última instância, o que vale um dicionário?
Um
dicionário é um “livro de referência em que se fornecem
informações, com a categoria gramatical, as acepções,
os registos, a forma correspondente noutro idioma...,
sobre palavras e expressões de uma língua, apresentando-as
de acordo com uma ordem convencional, geralmente alfabética”.
Dentro
desta definição, aparentemente clara e fácil de compreender,
esconde-se um problema altamente complexo e delicado para
quem se abalança a fazer um dicionário: a escolha das
palavras que nele devem entrar. Na verdade, são inumeráveis
as palavras de uma língua: desde as antigas que já caíram
ou estão a cair em desuso às mais recentes criações e
importações, desde as que são de uso generalizado no espaço
geográfico que nos interessa às que são típicas de uma
ou outra região... Que palavras escolher? E, depois, qual
o espaço geográfico que realmente nos interessa: Portugal
ou o espaço da língua portuguesa (os novos países, os
territórios que já foram portugueses, os espaços densamente
povoados por emigrantes nossos...)? E, ainda, em que acepções
tomar estas palavras: nas denotações mais evidentes e
comuns, ou nas variantes que o uso frequente lhes tem
criado?
Quem
decide? Quem assume a responsabilidade da escolha?
Temos
aqui, por certo, a primeira virtude deste dicionário.
Ao contrário de outras anteriores, saídas da cabeça de
autores isolados
ou de equipas de trabalho aturado, esta obra tem a chancela
da mais prestigiada associação de 'sábios' do nosso país,
a cujo contributo explicitamente recorreu e cujo nome
expõe aos comentários e críticas dos vindouros. Foram
construídas 69 426 “entradas lexicais” (tomadas
em 167 556 acepções), o que corresponde a 240 680 vocábulos,
presentes em 4 580 029 ocorrências. A eles se acrescentam
22 169 combinatórias, grupos de palavras que, quando se
juntam, criam novos e diferentes sentidos.
Está
tudo aqui? A escolha apagou-se atrás da decisão de dicionarizar
todas as palavras da língua?
Não,
e os autores explicam-no detalhadamente na Introdução:
há muitas outras que não tiveram a “honra” de entrar nestes
dois volumes por muitas razões que são enunciadas e assumidas,
e com as quais podemos ou não concordar. Tal como podemos
discordar do critério que levou a incluir outras tantas...
Mas se, mesmo naquilo que nos passa ao lado, gostamos
de “botar a nossa sentença”, quanto mais numa coisa tão
nossa como a língua que herdámos, que usamos e que transmitiremos
aos nossos netos? Aqui, mais do que em qualquer outra
área, a unanimidade de opiniões seria impossível.
Claro
que alguns pomos de discórdia são mais partilhados do
que outros quando se faz uma leitura deste dicionário...
E algumas das bandeiras mais aguerridas são empunhadas
não por quem o leu mas por quem “ouviu dizer”. Costumes
nossos...
Mas
antes de passar às possíveis críticas, vejamos outras
das virtudes da obra, respigadas a partir das intenções
expressas pelos responsáveis. A ordem dos meus comentários
é aleatória e da minha própria responsabilidade.
O
dicionário, mais do que um simples registo que seria chamado
a ser, assume-se como “obra de orientação idiomática”,
isto é, como uma espécie de manual da língua, depósito
de informações úteis a quem a usa, a quem a estuda, a
quem a aprende. E, nesse aspecto, inclui:
- transcrições
fonéticas de todas as entradas lexicais e, muitas vezes,
das suas variações
(plurais, femininos, etc.),
- registos
de sinónimos e antónimos relacionados com cada uma das
acepções em que as palavras são tomadas,
- indicações
sobre o uso correcto de preposições, conjunções, advérbios,
- etimologias
correctas e, quanto possível, completas,
-
informações gramaticais, designadamente sobre situações
de irregularidade,
- apresentação
de expressões que só se usam na linguagem oral ou que
têm um sentido especial quando utilizadas oralmente,
-
abonações abundantes (33 436), isto é, referências
bem identificadas a situações em que os mestres da literatura
portuguesa dos dois séculos passados (e alguns periodistas
actuais de
prestígio) utilizaram esta ou aquela palavra.
Alguns
destes aspectos, e só citei alguns dos muitos possíveis,
são totalmente inovadores no horizonte português, se não
na sua emergência pelos menos na forma criteriosa como
foram tratados. É certo que algumas críticas seriam possíveis:
a escolha da variedade preferida para a transcrição fonética,
a opção por esta ou aquela acepção do termo em detrimento
de outras, o evidente “urbanismo”...
No
entanto, o aspecto mais delicado deste dicionário, aquele
que mais tinta tem feito correr (e mais bocas tem feito
ouvir) prende-se ao aportuguesamento de estrangeirismos,
campo em que os autores se aventuraram com ousadia – ainda
que não tanto como a de que são acusados, uma vez que
propõem frequentemente uma dupla grafia.
Queiramos
ou não, uma língua evolui e só quem não repara no mundo
que o rodeia não se aperceberá que as sucessivas gerações
não falam nem escrevem da mesma maneira. Sempre foi assim.
Foi assim que passámos do sobrescrito ao envelope,
da merenda ao lanche, da casa de
pasto ao restaurante... A questão é que
tudo isso nos pareceu natural, harmonioso. Mas agora surge-nos
uma catadupa de palavras novas, ainda para mais dicionarizadas
e, para cúmulo, numa obra editada pela Academia das Ciências!...
É como se o céu nos caísse em cima da cabeça.
Vejamos,
porém. Em primeiro lugar, não é uma catadupa – não chega
a um milhar. E, depois, nenhuma delas é novidade, saída
da cabeça iluminada de algum académico – todas elas já
são usadas e algumas há bastante tempo. E até registadas,
como é o caso de bué, presente em dicionários desde
1995, pelo menos! Na realidade, foram escolhidas entre
os quatro mil vocábulos estrangeiros que os autores encontraram
nos jornais e escritores portugueses ao longos dos últimos
seis anos.
A
questão não está aí mas na ortografia. A ortografia é
a capa mais visível das nossas palavras. O som é importante
mas não se ouve – e se surge diferente, logo o atribuímos
a uma pronúncia defeituosa. Mas a escrita, meus senhores,
a escrita vê-se! Todos se lembram ainda da querela nacional
em torno da malograda reforma ortográfica que apenas alterava
4% das palavras portuguesas.
A
questão está em encontrarmos palavras como abajur,
bibelô, brifingue, lóbi, plafom
e, especialmente, stafe e stresse... (Já
nos esquecemos dos tempos em que escrevíamos pharmácia,
chímica e sublyme).
Vale
a pena ler as razões dos autores para, depois, concordarmos
ou discordarmos delas.
Apenas
registo uma para deixar aos meus leitores algum desejo
de adquirirem a obra e procurarem as outras: a questão
gramatical. Como é sabido, temos uma regra de construção
de plural que devemos respeitar – e a maior parte das
palavras estrangeiras obrigava-nos a infringir essa regra
para seguir a gramática inglesa ou a francesa. Ora a “alma”
da língua está essencialmente na gramática, mais do que
nas palavras que usamos. Usar palavras estrangeiras não
é crime – poderá ser necessidade, ou moda; construir frases
portuguesas com gramática alheia, isso sim, é uma lesão
da língua.
Mas
há outras razões. E reconhecer a sua justeza não me impede,
por exemplo, de estranhar que se tenha proposto a grafia
stresse (e não setresse) e ignorado a forma
brasileira estresse (tanto mais que se registou
esporte ao lado de desporto)...
Vai
longa esta crónica e há que dar-lhe um fim.
O
que vale este dicionário? Não tenho dúvidas em dizer que
vale muito, que a sua cotação na “bolsa” da lexicografia
portuguesa é sólida e naturalmente crescente com o passar
dos anos. E não só por ser peça rara na nossa panóplia
(omnia rara cara, diziam os latinos) mas porque
os defeitos que se lhe possam atribuir não chegam para
ensombrar o valor de uma obra há muito esperada e constantemente
adiada. E não posso deixar de cumprimentar os seus autores
que tiveram a coragem de “dar a cara” por ela. Se não,
talvez os nossos trinetos, daqui a mais uns cento e tal
anos, continuassem a esperar pelo “desejado”...
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