por
José Victor Adragão
(Professor
da ESE)
A
culpa será dos linguistas?
Vinha eu
pela estrada fora, numa das minhas repetidas viagens
para Setúbal, quando a rádio me presenteou com um debate
sobre as causas da pouca leitura dos portugueses. Muitas
e variadas razões eram aduzidas, com mais ou menos entusiasmo,
optimismo, desesperança, consciência das especificidades
do nosso tempo... De repente, do alto da sua sabedoria
intocável, um senhor de nome sonante apontou o dedo:
A frase,
se não era esta, queria dizer isto mesmo.
Fiquei
a pensar. Tenho muitos anos destas andanças mas lembro-me
bem da forma como aprendi, da forma como várias de gerações
de professores ensinaram, da forma como ensinamos os
nossos alunos a ensinar, da forma como hoje se ensina
português. Que mudou?
A
língua continua a ser a mesma (com alterações superficiais,
é certo), porque é língua e porque é a nossa. As questões
continuam a ser as mesmas: como olhar para um objecto
que é simultaneamente um instrumento de comunicação
(e de trabalho), uma estrutura a desmontar e a apreender,
um meio de expressão (por vezes, de expressão artística),
um veículo de prazer mais ou menos lúdico, mais ou menos
profundo. A estas, juntam-se outras, de índole psicológica
e social, proveniente de ela ser, para muitos de nós,
a língua materna: a ligação afectiva, a noção de herança
recebida, a relação entre consciência linguística e
consciência nacional, a articulação entre a auto-imagem
psicológica e a auto-imagem linguística... Nada disto
mudou.
Se
me detiver a olhar as diferenças entre o que se fazia
e o que se faz, creio que o que salta aos olhos é a
mudança de perspectiva de tratamento do facto linguístico.
Explico-me. Quando eu era aluno, os sumários da aulas
de português eram invariavelmente: “Leitura, interpretação
e análise gramatical do texto...”. “Leitura” significava
ouvir um colega ler em voz alta, melhor ou pior, um
texto que ninguém tinha preparado (às vezes tinha-se
a ideia de que talvez o professor o tivesse preparado
uns cinco ou dez anos antes). “Interpretação” era discutir,
em duas ou três pinceladas, as ideias do autor, depois
de um conjunto de perguntas e respostas sobre quem tinha
feito o quê, onde, quando e como. “Análise gramatical”
era uma série enfadonha (e por vezes hermética) de questões
e aprendizagens passivas acerca dos ses, dos
ques, dos graus dos adjectivos, dos sujeitos,
dos predicados, dos “apostos ou continuados”...
Esta
visão sincopada da língua ou, melhor, dos textos do
manual permitia aos professores orientar o seu ensino
de acordo com os seus gostos pessoais (para não dizer
com o humor de cada dia): alguns passavam horas a divagar
sobre as características estéticas dos seus autores
preferidos, outros massacravam todos os dias os alunos
com mais um complemento, com uma nova conjunção subordinativa...
Que
mudou? A meu ver a forma de apresentar a língua, como
um todo, como um edifício em que as partes de suportam
umas às outras, como um fenómeno em que os conteúdos
são servidos pelas formas, numa relação coesa e coerente
objectiva e partilhável.
É
isto o que se faz? Não sei. Pelo menos é isto o que
os programas propõem que se faça. Em nome de uma apropriação
da língua por parte de todos, como receptores e produtores
de um bem essencial à vida pessoal e social.
Foi
este, essencialmente, o contributo que os linguistas
trouxeram aos programas. Claro que a história tem vicissitudes
e houve exageros e precipitações na aplicação de algumas
teorias novas. Mas também o houve por parte dos defensores
de renovados caminhos de análise literária... Hoje creio
que se atingiu um razoável ponto de harmonia e de estabilidade.
Por isso, a pergunta interessante seria: a culpa é dos
programas? ou será antes das metodologias, das práticas,
das motivações de professores e de alunos?
E
fica sempre no ar a questão que animava o debate: será
por causa disto que os portugueses não lêem? |