... a defesa das ideias


Às quartas • 26/06/2002
Albertina Palmapor Albertina Palma
(Professora do Departamento de Línguas da ESE)
 


Eu, cá, acho mal!


Mais um ano lectivo está a chegar ao fim e a azáfama é a habitual. Os últimos testes, as reuniões de avaliação, as provas globais, os exames, as reuniões de preparação do próximo ano. Alguns professores, muitos, não sabem em que escola ficarão. Estão pois a preparar o trabalho de outros, enquanto alguns desses estarão a preparar o seu, sabe-se lá onde.

Nesta preparação do próximo ano escolar entra a implementação da Reorganização Curricular no 3º ciclo. Esta exige a introdução de metodologias inovadoras no ensino e na aprendizagem, das quais decorrem uma nova gestão de conteúdos disciplinares e de tempos lectivos. Penso que a ideia basilar da Reorganização Curricular não está a ser entendida por muitas escolas, pois continuam a chegar-me ecos de profundos desacordos na negociação de horas das diferentes disciplinas da mesma área, com o argumento que as suas horas não chegam para dar os respectivos programas. Isto prova a dificuldade que alguns professores sentem em perspectivar a sua disciplina num contexto interdisciplinar, orientado pelo desenvolvimento de competências essenciais transversais. O resultado é que, provavelmente, não só não irão contribuir para o desenvolvimento das referidas competências, como irão ensinar em piores circunstâncias os conteúdos das suas disciplinas. Não admira, sobre isto já falei no ano passado.

Da agenda do mês de Junho, faz ainda parte a escolha dos manuais para cada uma das disciplinas dos 4º e 7º anos, para os próximos três anos. Supostamente, e as editoras não deixam de o proclamar, os manuais estão de acordo com as orientações da Reorganização Curricular. Estarão? A resposta a esta pergunta é de importância crucial. Como se sabe, na maior parte das escolas o manual substitui o programa. É mau, pois o manual propõe uma gestão do programa a partir da interpretação que os seus autores fazem do mesmo, numa atitude de distância dos contextos reais em que ele vai ser aplicado. Isto não deixa de ser contraditório com o quadro de flexibilização curricular, em que aparentemente nos movemos, já que as decisões curriculares deviam ser tomadas a partir de um diagnóstico rigoroso de cada turma. Mais uma vez, estamos quase sempre perante a gestão de conteúdos, quando a Reorganização Curricular assenta no desenvolvimento de competências.

Isto dos manuais tem, no entanto, muito mais que se lhe diga. Vejamos, as editoras escolares são em grande número, vá-se lá saber porquê. A concorrência é, portanto, feroz e apoia-se em quê? Na qualidade, dirão eles, mas qualidade de quê? Que provas de qualidade científica e pedagógica dão os autores a não ser a posteriori? Ou seja, tal como nos cozinhados o verdadeiro teste é o da prova, nos manuais o verdadeiro teste é o da aplicação e, tal como o paladar nos cozinhados é individual, a aplicação do manual também o é. Sabendo da impossibilidade de provar/aplicar todos os manuais (chegam a ser dezenas!) produzidos pelas várias editoras, estas apostam em sofisticadas técnicas de marketing para seduzir os professores. Juntamente com os manuais e os seus respectivos materiais auxiliares, é oferecida toda uma parafernália de materiais extra, que vão desde a pasta, esferográfica e bloco de apontamentos, aliás utilíssimos (note-se que os professores são dos poucos trabalhadores que têm de pagar os seus próprios utensílios de trabalho!), a agendas, calendários, fichas de alunos, grelhas de trabalho, planificações, acetatos, etc. Já para não falar nas sessões com os autores em diversos pontos do país, que dão direito a faltar às aulas, a almoço e a vários "coffee breaks" em hotéis agradáveis. Eu não acho mal.

O que me desgosta é saber que estas operações de marketing custam rios de dinheiro, dinheiro esse que tem todo a mesma origem: o preço do manual, pago, é claro, pelas famílias dos alunos. Sabendo que os lucros das editoras se devem principalmente aos autores, que apenas recebem uma percentagem ridícula do preço de capa, dá que pensar como é que, para aceder a um sistema de ensino, constitucionalmente gratuito, as famílias portuguesas estão afinal a contribuir para o enriquecimento de empresas orientadas pelas leis do mercado. Eu, cá, acho mal!