... a defesa das ideias


• 03-04-2002 •

Educação
por José Manuel Catarino Soares
(Professor do Instituto Politécnico de Setúbal)


 

Breve apontamento sobre a retórica da anti-globalização

 

Recentemente emergiram vários "movimentos sociais" que se declaram contra a "globalização" ou "mundialização", apontada como o inimigo principal da humanidade. O que se deva, porém, entender ao certo por "globalização" ou "mundialização" neste contexto e porque deveríamos combatê-la como um inimigo fidagal da humanidade são, porém, questões que (me) suscitam muitas dúvidas, grandes e pequenas. Eis uma pequena: nesses "movimentos" pontificam tanto personalidades ditas de "direita" (como, por exemplo, o sr. José Bové, chefe de uma associação de agricultores franceses), como personalidades ditas de "esquerda" (como, por exemplo, o prémio Nobel da literatura José Saramago). O que poderá unir, se é que alguma coisa une, personalidades tão díspares contra a "globalização"?

Contra a globalização de quê?

Antes de aí chegarmos, há, porém, uma questão básica, elementar, uma pergunta que se prende com o uso que fazemos das palavras. Globalização ou mundialização são palavras sob as quais se podem abrigar factos ou processos ou instituições da mais diversa índole — da Organização Mundial de Saúde (OMS) à Internet, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) aos milhares de aviões de passageiros que cruzam diariamente o espaço aéreo em todas as direcções, das medidas de protecção mundial contra o extermínio da baleia aos serviços públicos dos nossos CTT, que devem ser, presumo, a mais globalizada das empresas portuguesas, pois de contrário não poderíamos receber e enviar a nossa correspondência para os quatro cantos do mundo. Devemos combater a OMS, a OIT, a Internet, as viagens de avião, os CTT, como o grande Satã globalizador que ameaça a humanidade? É difícil imaginar que alguém (em Portugal, pelo menos) possa acreditar em tais patranhas. Há necessidade, pois, de clareza: se não é neste sentido comezinho que se fala de “globalização” ou de “mundialização”, de que se fala então? Dito de outro modo, os movimentos anti-globalização (ou anti-mundialização) estão contra a globalização (ou mundialização) de QUÊ ? Eis a questão que, no mínimo, importaria responder.

No intuito de conseguir obter uma resposta mais cabal, fui ler os documentos reunidos no endereço <http://www.portoalegre.2002.org/>, o sítio virtual do Forum Social Mundial (FSM), a entidade federadora dos movimentos “anti-globalização”. Saí de lá um pouco mais esclarecido, pelo menos em dois pontos. Primeiro, a palavra “globalização” é quase sempre adjectivada de “liberal“ ou “neoliberal” ou “capitalista” ou “imperialista” ou “dominante” ou “hegemónica” ou “predatória”. Mas também há quem fale em “globalização das respostas” contra a “globalização”, em “desglobalização” contra a “globalização” e em “globalização dos povos” contra a “globalização dos poderosos”. Segundo, parece, no entanto, haver um motivo comum nesta polifonia (ou cacofonia?): um pendor acentuado pelo eufemismo, pelo oxímoro e pela hipérbole. O facto merece esclarecimento.

Oxímoros, hipérboles e eufemismos

“Globalização (neo)liberal”, “globalização hegemónica”, “globalização dominante” “globalização predatória”, são expressões esotéricas, no melhor dos casos oxímoros, que só são entendíveis se nos dispusermos a ver neles hipérboles de “globalização capitalista” e “globalização imperialista”, elas próprias hipérboles de capitalismo e imperialismo. Porquê esta necessidade de hiperbolizar o capitalismo dando-lhe a figura e o porte de um moderno gigante Adamastor ? Responda quem souber. Uma coisa é certa: dos textos que li (e foram quase todos) depreende-se que os membros da maior parte dos movimentos federados no FSM utiliza os termos “globalização”  e “mundialização” em sentido idêntico ao que Lenine, o dirigente máximo do partido bolvechique da Rússia que tomou o poder nesse país em 1917, designou por “imperialismo, estádio supremo do capitalismo”, numa obra publicada, salvo erro, em 1916, com esse mesmo título. Mas se assim é, porque razão não se auto-designam estes movimentos por “movimentos anti-capitalistas” ou “movimentos anti-imperialistas” ou por “Forum Mundial Anti-imperialista”?

Não sei qual é a boa resposta, porque são várias as respostas possíveis, mais ou menos plausíveis: (1) porque todos ou quase todos os membros do FSM são anti-capitalistas, muitos são marxistas, mas poucos são leninistas, (2) porque a maioria nunca leu a obra citada de Lenine, desconhecendo, portanto, qual a genealogia político-intelectual das ideias que defendem, (3) porque muitos leram essa obra, quiçá com aprovação, mas entendem que, nos dias de hoje, depois da implosão do Estado criado por Lenine, não é aconselhável fazer gala dessa filiação de ideias, razão pela qual preferem optar pelo eufemismo e pelo oxímoro — em vez de político, “social”; em vez de partido, “movimento”; em vez de anti-capitalismo, “anti-globalização”; em vez de centralização política das lutas, “globalização das respostas”.

Quanto ao mais, e em terreno menos armadilhado, o FSM declara combater contra a guerra e o militarismo, pela paz e a justiça social. Nobres causas, todas elas, que qualquer pessoa pode entender e sobre as quais se pode debater e agir de maneira concreta, começando pelo país em que se vive, sem necessidade de ter dinheiro para comprar uma passagem de avião até Porto Alegre (Brasil). Mas esse é um assunto que terá que ficar para outra oportunidade.


José Manuel Catarino Soares - 03-04-2002 18:03