... a defesa das ideias


• 17-12-2003 •

Educação
por Cristina Gomes da Silva
(Professora Adjunta da ESE de Setúbal)


 

As paixões que (não) nos consomem

 

Há mais de um ano escrevi neste mesmo espaço sobre assuntos que continuam a preocupar-me: a prepotência, a intolerância, o desrespeito pelos outros, os pensamentos (e práticas) totalitários, os actos injustificáveis cometidos por ignorância ou, pior, por má formação individual ou colectiva. Escrevi, então, tendo como leit motiv os resultados eleitorais obtidos por Jean-Marie Le Pen em França.

1. De então para cá vi, muito longe das nossas fronteiras, eclodir uma guerra sem razão (como quase todas) e morrer não sei quanta gente.

2. Cá dentro vi desenrolar-se um filme negro em torno dos abusos sexuais cometidos contra crianças e jovens da Casa Pia, mais negro ainda pelo aproveitamento político que suscitou e pelas vítimas directas e indirectas que penalizou.

3. Li na imprensa estrangeira que Portugal é um país deprimido, alguns lusos se indignaram, mas não deixaram, por isso de continuar deprimidos.

4. No dia mundial de luta contra a Sida, uma reportagem dava conta dos receios dos portugueses relativamente às formas de contágio da doença – muitos pensam que pode transmitir através de um simples beijo...

5. Em Aveiro voltam a subir ao banco dos réus mulheres que abortaram e os partidos no governo admitem ponderara a possibilidade de descriminalizar o aborto mas não de despenalizar, o que significa que continua a ser proibido. Com que consequências?

6. As notícias dos últimos dias dão-nos conta de uma ligeira retoma da confiança dos portugueses evidenciada no aumento do consumo no último trimestre.

7. Leio, no último número da revista Visão uma peça sobre as nossas crianças, os seus hábitos de consumo e o investimento que os pais fazem para satisfazer esses hábitos e não consigo deixar de me assustar um pouco nem de deixar de pensar numa frase retida da leitura de “Os nós e os laços” de António Alçada Baptista “quando estamos apaixonados não compramos camisas”. A frase, atribuída a um dos personagens, chega-me com frequência quando olho para os portugueses, quais formiguinhas em direcção a hipermercados e centros comerciais numa azáfama incontida que desagua, por vezes, numa imensa frustração, cujos sinais são mais evidentes neste tempo de Natal e falsa abundância. Nas ruas, nos dias que se seguem a estes eventos, vamos encontrar muitas caixas que serviram de recipiente para acondicionar alguns sonhos, efémeros sem dúvida, muitos papéis de embrulho, quais despojos de uma guerra colorida. Não conseguimos apaixonar-nos.

Acho que hoje, somos um país desprovido de paixões, e não falo das paixões amorosas, falo da paixão pelo saber, pelo conhecimento pela descoberta, aquela que nos faz ser cidadãos de corpo inteiro, informados, bem preparados, curiosos e empreendedores e é neste ponto que me inquieto ainda mais porque não sei que fazer com este dever que temos de educar, qual o papel da educação hoje, que fazer com uma classe política que substitui os autores clássicos portugueses por textos do Big Brother nos programas de Língua Portuguesa, com pais que substituem o tempo de estar com os filhos, de se darem aos filhos, por presentes de preços exorbitantes, que se vão acumulando nos quartos dos petizes matando qualquer esboço de desejo. Está tudo ali, não há mais nada para desejar, como tal, também há pouco espaço para a frustração que, por sua vez, se bem gerida, engendraria novos desejos.

Já tenho ouvido como justificação, para esta nossa maneira de estar, os longos anos da ditadura em que as privações eram muitas, o obscurantismo imenso, a frustração indizível e a tristeza incomensurável. Quanto a mim não é por termos vivido em ditadura que não sabemos viver em democracia, é porque viver em democracia, pensar e decidir com autonomia dá muito mais trabalho do que ter alguém, ainda que autoritário que pense por nós. Afinal saber desejar faz parte da aprendizagem de vida e nos temos algum défice de aprendizagem.

Quero, no entanto acreditar que o pessimismo que me envolve, perante estes cenários, vai dissipar-se. Quero continuar a acreditar que podemos fazer melhor e que esta é só uma fase, longa é certo, que vai acabar. Quero acreditar que conseguimos ser e fazer melhor e quero apostar e participar num projecto educativo que tenha como resultado uma melhor sociedade e melhores cidadãos.


Cristina Gomes da Silva - 17-12-2003 10:44