... a defesa das ideias


Às quartas • 19/03/2003

António Mendes Lopespor António Mendes Lopes
(
professor do Departamento de Desporto da ESE)


Quando as competências
desacreditam os conhecimentos

A noção de competência arrasta consigo uma variedade de definições, frequentemente bastante diferentes umas das outras. O Ministério da Educação, responsável pela reforma escolar cuja essência é baseada num modelo de "perspectiva por competências", caracteriza este por "um saber agir que se processa pela integração e pela mobilização de um conjunto de recursos (capacidades, habilidades, ...) utilizados eficientemente, em situações similares".

No dizer de Boutin, M. (2002), a perspectiva por competências (PPC) é uma perspectiva decalcada do modelo industrial. Autor de números textos e obras, Boutin é um dos muitos universitários a lançar um dos olhares mais críticos sobre esta perspectiva, sobre  as suas bases teóricas e sobre a maneira de a implementar.

Este modelo tem para o autor, "uma  base de taylorismo, de behavorismo e de organização do trabalho. Ele visa desenvolver competências com vista a uma sociedade de tipo competitivo centrada sobre o rendimento e a performance. Segundo o autor esta visão de proceder conduz a uma visão mercantil da educação". Ela representa ainda, no dizer do autor, "uma macdonalização dos conhecimentos e da cultura".

O modelo de formação em apreço não está muito distante do modelo americano dos anos 70 baseado nos "competency based programs" que sofreram, devido ao seu fracasso, fortes críticas, tanto nos Estados Unidos, onde foram aplicados, como em países como Grã-Bretanha, Austrália, etc.

No caso português em concreto parece-nos que a corrente sócioconstrutivista que serve de fundamento epistemológico à reforma se apoia segundo o princípio no qual o saber resulta só da experiência e da realidade. Os conceptores da reforma têm formulado este princípio na base de algumas teorias; umas centram o processo pedagógico sobre o aluno, outras sobre a aprendizagem e os resultados. Esta amalgama, note-se, cria uma imensa confusão e não menos problemas, uma vez que as noções veiculadas pertencem a paradigmas diferentes e frequentemente contraditórios.

No que diz respeito ao ensino, passa-se de um professor que é visto como um transmissor de conhecimentos quase sempre identificado com a escola tradicional e conservadora, para um outro tipo de “professor”, quer dizer um acompanhante, que no caso desta “nova escola”, tem as tarefas de sugerir, aconselhar, apoiar, mas nunca ensinar ou instruir.

Quanto ao que se propõe para o aluno, deve este ser encorajado a aprender por ele próprio. Ele é convidado a construir o seu percurso escolar. Espera-se dele grande curiosidade, plena iniciativa, uma boa organização das tarefas. Ele deve ser ainda capaz de conduzir o seu próprio percurso de aprendizagem e de trabalho. Pensamos que a irmos por aqui certamente que a reforma é uma questão de sorte para quem aprende, arriscando-se este modelo a agravar as disparidades no plano social. Os alunos mais desfavorecidos serão sempre os perdedores.

Pelo seu carácter pragmático e a sua valorização relativa  aos saber-fazer, esta concepção simplista e redutora do processo de aprendizagem, a ser levada à prática, acabará por aniquilar a necessidade dos conhecimentos fundamentais, que praticamente deixarão de existir. Opondo-se  ao processo ensino-aprendizagem, a PPC acaba por preconizar a não transmissão dos conhecimentos, impondo-se como modelo único, negando a autonomia e a liberdade de ensinar (?) por parte do professor.

Não está de maneira nenhuma em causa uma luta contra uma reforma (que é necessária) para o sistema educativo. Trata-se sim de discutir a imposição de um modelo de pensamento único, relativamente ao qual os mais directamente envolvidos não se posicionam, como se o consenso em matéria de educação fosse o elemento chave do discurso actual. Enfim tudo se passa como se com o actual silêncio todos tivessem aderido ao dogma das competências.

Sabe-se no entanto que não é assim!