... a defesa das ideias


Às quartas • 09/07/2003

Albertina Palmapor Albertina Palma
(
Departamento de Línguas/ESE de Setúbal)


A fúria legislativa e os problemas da vida


Estamos mais uma vez em vésperas de férias, mas, como já vem sendo hábito por esta altura do ano, matéria para pensar no campo da educação é o que não falta. Desta vez a coisa é séria mesmo. Já para não falar no ensino superior, onde todas as áreas, sem excepção, estão a ser objecto de revisão legislativa, são os próprios fundamentos do edifício legislativo da educação que estão em vias de ser alterados, com a proposta de uma nova Lei de Bases em discussão na Assembleia da República
.

Note-se que a actual Lei de Bases do Sistema Educativo é de 1986, ou seja, vamos alterar a lei fundamental da educação passados apenas 17 anos, antes que a mesma tenha sido totalmente implementada. Isto, aliás, faz parte da cultura portuguesa, até porque, e este é outro aspecto singular da nossa cultura, é preciso regulamentar posteriormente a maior parte das determinações consignadas na lei, para que esta possa ser aplicada. Daí que, na sequência de leis e decretos-lei surjam conjuntos de legislação complementar que é preciso conhecer, gerir e aplicar com competência. A título de exemplo, e para se perceber melhor a dimensão do assunto, a seguir à aprovação da Lei de 1986, o Ministério da Educação publicou, em 1991, uma brochura em que se dava conta dos diplomas legais mais importantes relativos à Reforma Educativa e que os professores deviam conhecer – nada menos do que 130! Por seu turno, a Associação de Municípios do Distrito de Setúbal, na sua agenda anual de 1997, listava o conjunto da legislação de interesse para os professores: 180 documentos!

Voltando à proposta de revisão da Lei de Bases, há a realçar pelo menos duas questões importantes, que têm a ver com alterações, agora propostas pelo governo, a medidas anteriores que não foram cabalmente aplicadas. Algumas não foram pura e simplesmente aplicadas. É o caso da formação de professores do 3º ciclo do ensino básico. Pela Lei nº 115/97 (que introduziu alterações à Lei de 1986), estes professores poderiam ser formados nas Escolas Superiores de Educação, à semelhança dos professores dos 1º e 2º ciclos e educadores de infância. Porém, este ponto nunca foi regulamentado e, consequentemente, nunca foi possível às ESE ver as suas propostas de planos de estudo para estes cursos aprovados pela tutela, pelo que esta medida nunca chegou a concretizar-se. Não obstante, o articulado da actual proposta do governo, estabelece que os professores do 3º ciclo são formados exclusivamente em universidades.

Outra questão, mais complexa, tem a ver com a duração da escolaridade obrigatória. O governo propõe uma escolaridade obrigatória de 12 anos. Nada contra. Em teoria, nada melhor para uma pessoa do que passar 12 anos na escola. Mas, vá-se lá dizer isto a grande parte dos nossos jovens e até a grande parte dos pais. A escola é em certos aspectos tão pouco atractiva, fica tão cara às famílias e é em alguns casos tão limitadora do desenvolvimento de projectos pessoais, que muitos jovens acabam por enveredar por percursos alternativos. Em 2001, sendo a escolaridade obrigatória de 9 anos, a percentagem de jovens entre os 18 e os 24 anos que não tinham o 9º ano, nem estavam a frequentar a escola, era, em média, 24%, sendo nalguns concelhos mais de 50%!

Portanto, não basta decretar estas coisas e torná-las obrigatórias em Diário da República. É preciso criar condições reais para as pôr em prática. O cumprimento da escolaridade obrigatória exige a promoção de uma política eficaz de acesso e sucesso igual para todos, criando apoios educativos e sociais adequados, combatendo energicamente o abandono escolar, prevenindo comportamentos de risco e fiscalizando o trabalho infantil. Acima de tudo, exige a capacidade de convencer professores, alunos e pais que a escola pode ser um local agradável, onde vale a pena estar, conviver, aprender, crescer, mais do que em qualquer outro sítio. Tenho dúvidas de que isto venha a acontecer num futuro próximo. O mais certo é a escolaridade obrigatória continuar sem ser plenamente cumprida. A percentagem é que provavelmente vai aumentar e, em vez da actual média nacional de 24%, poderemos ter que nos confrontar com 30, 40 ou mais. É lamentável em qualquer dos casos.

Outras leis fundamentais já foram alteradas nesta legislatura, como é o caso da Lei de Bases da Segurança Social, o Código do Trabalho e, como já referido, outras estão em marcha, como, por exemplo, toda a legislação respeitante ao ensino superior. O que não se vê são resultados palpáveis desta fúria legislativa, ou seja, não se identificam melhorias significativas da situação social, económica e cultural dos portugueses, bem pelo contrário. É caso para perguntar: se o governo pusesse tanta energia em resolver os problemas da nossa vida como põe em regulamentá-la, será que não poderíamos ter esperança num futuro melhor?