... a defesa das ideias


Às quartas • 14/01/2004
Ana Pires Sequeirapor Ana Pires Sequeira
(
Docente do Departamento de Línguas
da
ESE de Setúbal)


Manuais Escolares... por onde
paira a multiculturalidade?

O tema escolhido poderia colocar-nos várias questões. Logo à partida poderia ser o porquê de falar deles? A comunicação social tem-se encarregado de os pôr na ordem do dia e, em particular, no início deste ano lectivo? Será só porque são um peso na bolsa dos encarregados de educação?

Mais e mais questões poderiam ser levantadas...

São materiais pedagógicos geradores de mudança? Fomentadores de interdisciplinaridade? São indispensáveis ao professor, como livro único, numa sala de aula? Abordam temáticas pertinentes às crianças e aos jovens? São supervisionados por especialistas consoante a área científica? Incorporam os estudos mais recentes de como conceber e elaborar manuais escolares? 

Estou certa de que cada leitor poderá reflectir sobre cada uma destas questões. Questionar-se em relação a outras...   

Há já alguns anos escrevia, com alguma preocupação, que: Aos professores cabe escolher os manuais a adoptar; às crianças cabe “carregar” com eles. Agora, volvidos quase quinze anos, o “peso” continua e, talvez, até tenha aumentado... Engraçado, pensamos que evoluímos e, regredimos... e, aí está um estudo publicado na revista Teste Saúde nº 45 (Outubro/Novembro de 2003) Mochilas - Peso a mais, alertando-nos, nomeadamente, para que  ...as consequências para a saúde são inevitáveis, sobretudo ao nível da coluna vertebral e da estrutura óssea.

Contudo, há mudanças ou se quisermos inovações! Quem, ainda, não viu os “catraios” puxando umas malinhas a caminho da escola?

Sim, os manuais e todo o material utilizado nas nossas escolas sensibilizaram os comerciantes do ramo... lança-se no mercado uma versão “pedagógica” das malas de viagem!... Interessante, apercebermo-nos como o “negócio” da Educação e dos manuais em particular, tem ramificações em tantos outros campos... e, mais interessante se torna constatar, mesmo ao “adicionarmos” o conhecimento de como a Educação tem sido tão menosprezada pelos sucessivos governos deste país que, isto gera “alimento” a alguns... “desfalca” a bolsa de outros... e, causa “danos” em muitos mais...

As questões colocadas poderiam induzir a problemática se sim ou não aos manuais escolares. Não é o objectivo deste breve artigo, pretende-se só levantar algumas hipóteses de reflexão sobre esta temática tão abrangente e presente no quotidiano de tantos! Temática para a qual, enquanto educadores, devemos estar sensibilizados, adquirir e desenvolver competências de modo a olharmos criticamente para os diferentes produtos (leia-se manuais) que proliferam no mercado!

Este “olhar” crítico pode, ainda, assumir outra perspectiva e com ela adquirir uma nova abordagem, a do título acima enunciado: manuais escolares... por onde paira a multiculturalidade?

Este título surge a propósito de um trabalho realizado em parceria com outro colega e com um grupo de alunos da Escola Superior de Educação de Setúbal.

O desafio era tentar uma breve abordagem aos manuais do 1º Ciclo do Ensino Básico, em particular os de Língua Portuguesa e do Estudo do Meio, numa perspectiva multicultural. Os alunos pareciam interessados, a demonstrá-lo havia uma variadíssima panóplia de manuais espalhados pelas diferentes mesas de trabalho... A “análise” incidia sobre os textos e as imagens, tendo em conta algumas variáveis étnico-culturais, nacionalidade, classe social, género, religião, língua, deficiência...

Os grupos de trabalho iniciaram, analisaram e apresentaram os resultados possíveis ao tempo disponível e aos saberes já adquiridos!

Foi muito estimulante observar como o confronto com “essa realidade” denominada manuais escolares, os deixou perplexos perante o “encontrado”! 

Não vou sujeitar o leitor ao enunciar de todos os pormenores. Contudo, há que realçar que, mais uma vez, os manuais “analisados” e em vigor no ano lectivo presente descuram, de um modo geral, uma abordagem multicultural. Qualquer imagem com cariz religioso reporta-se à religião católica, a língua portuguesa é assumida como língua materna de todo o público escolar, a deficiência não existe, ou melhor pode aqui ou ali surgir uma criança de cadeira de rodas, os rapazes continuam a jogar à bola e as raparigas não só usam “lacinhos” como brincam com bonecas e ajudam a mãe em casa, é raro algumas das tarefas domésticas não serem atribuídas às mulheres, as profissões além de não serem representativas da população portuguesa induzem a estereótipos de género. A nacionalidade pouco é abordada, surgindo, por vezes, a letra do hino nacional e a imagem da bandeira desenhada sem o recurso a uma imagem real. A diversidade cultural e étnica, cada vez mais patente na sociedade portuguesa e nas escolas em particular, leva a perguntar de novo: onde paira a multiculturalidade?