... a defesa das ideias


Às quartas • 16/06/2004
António Ângelo Vasconcelospor António Ângelo Vasconcelos
(
Professor Adjunto Equiparado/Departamento de Música)


As artes na Escola Superior de Educação: uma aposta com futuro

Nas sociedades contemporâneas as diferentes formas de arte desempenham papéis relevantes nos quotidianos das comunidades, na criação e recriação de identidades (individuais e colectivas), no desenvolvimento comunitário, nas situações de lazer e de entretenimento, nas componentes económico-financeiras.

Ao falar dos mundos das artes quero designar por um lado, universos complexos onde interagem várias redes (criadores, intérpretes, técnicos, públicos, produtores, etc.) e por outro, universos variam consoante os contextos históricos, sociais, culturais e geográficos.

Universos diferenciados em que o de Jorge Peixinho é diferente do Emanuel Nunes, o da Paula Rego é diferente do Júlio Pomar, o do Paulo Rocha é diferente do José Fonseca e Costa, o da Agustina Bessa Luís é diferente do António Lobo Antunes, e assim sucessivamente. Apesar dos cruzamentos e dos pontos de contacto entre os diferentes universos (como bem demonstrou o violoncelista Yo Yo Ma entre as suites de J. S. Bach e as obras do arquitecto italiano do século XVIII Piranezi). A capacidade em compreender e se mover nestas complexidades, em diferentes comunidades imaginadas e de sentidos, é uma das dimensões importantes dos mundos das artes e da educação e aprendizagem artística.

Estes diferentes universos estão presentes no distrito de Setúbal através da proliferação de uma grande variedade de instituições e de pessoas que, de um modo mais formal ou informal, se relacionam com a criação, a fruição e a realização artística. Do teatro à dança, do cinema à banda desenhada, da música à literatura, da pintura ao artesanato. Propostas que cruzam diferentes níveis de cultura (erudito, popular, de massas), procedimentos (festivais, concertos, exposições, etc.), espaços, lugares, histórias e memórias. Isto para já não falar na riqueza e diversidade do património arquitectónico e natural.

Neste contexto, um dos desafios que se coloca ao ensino superior público merece especial destaque a necessidade de encontrar e formular propostas formativas (em parceria com diferentes tipos de instituições e actores sociais) que dêem corpo a visões de futuro que sirvam de mediação entre as expectativas existentes e a necessidade de encontrar novas necessidades, novas respostas às interpolações complexas com que a sociedade portuguesa se confronta.

Assim, pensar as artes na Escola Superior de Educação, significa imaginar e operacionalizar propostas formativas que reconciliem por um lado, as artes e a educação com a sociedade e a chame para uma maior participação neste tipo de actividades e por outro, evitar a reprodução dos modelos existentes noutras instituições de ensino superior. Daí a importância em articular os saberes locais, nacionais e internacionais, a diversidade de procedimentos e a sua convergência e complementaridade com outras áreas de saber. Da ciência à tecnologia, da gestão à ecologia e à qualidade de vida.

Este imaginar e operacionalizar propostas formativas passa, na minha opinião, por quatro domínios fundamentais: a formação, a criação e a experimentação, a intervenção comunitária a investigação e produção de conhecimento.

No primeiro caso, através de modalidades de formação diferenciada (inicial, contínua, ao longo da vida) e de duração variável, não esquecendo o reconhecimento e validação das competências adquiridas. No segundo, através de práticas formativas centradas na criação e experimentação artística, pensando em percursos de aprendizagem inovadores relacionados com os modos de organizar os tempos e os espaços de trabalho, quebrando as lógicas disciplinares dominantes. No terceiro, os mundos das artes e da educação adquirem outros sentidos quando se potencia a ligação entre a formação e a intervenção comunitária através do desenvolvimento e implementação de projectos diferenciados. Por último, a investigação e produção de conhecimento, não só como estratégia de aprendizagem mas também como estratégia potenciadora de um maior conhecimento, pensamento crítico e divulgação acerca das artes no distrito.

Estes domínios, cruzando as artes do palco com as artes visuais, as artes de rua com manifestações mais “rebeldes”, têm de assumir uma outra componente fundamental: articular os particularismos com as correntes internacionais (levando a uma maior internacionalização das práticas e dos procedimentos), articular as práticas amadoras com as práticas mais eruditas.

É tendo em conta estas diferentes complexidades e a capacidade de as por em conexão através de redes diferenciadas, que se poderá contribuir para o alargamento dos horizontes e dos contextos de referência, para a familiarização com uma gama variada de linguagens, reportórios e estéticas artísticas, para a socialização em diferentes formas de comunicação que não as mais banalizadas.

O alargamento dos contextos de referência constitui, na minha perspectiva, um esforço relativamente difícil mas fundamental para repensar a nossa acção individual e colectiva. Como acto político na construção de uma razão cosmopolita onde as subjectividades e as polifonias dos olhares ecoem como espaços de liberdade na formação das pessoas, para que elas cresçam como cidadãs e cidadãos dos seus respectivos países e de um mundo em que interagem diferentes comunidades de sentidos, de pertença e de convivencialidade.

O ensino superior público não pode (e não deve) alhear-se destes desígnios. Pelo compromisso político, social, educativo e interventivo que assumiu. Pelas responsabilidades em transformar os constrangimentos e os riscos em desafios com futuro, promovendo outros modos de ver, de fazer e de ser, criando outros possíveis e imaginários.