... a defesa das ideias


Às quartas • 25/02/2004
Albérico Afonso Costapor Albérico Afonso Costa
(Professor Adjunto do Departamento de Ciência Multiculturalidade e Desenvolvimento)


Currículo, História e Memória…
Não se pode exterminá-la?

A profunda desvalorização que o ensino da História sofreu na recente reforma curricular do ensino básico deve constituir motivo de reflexão e análise. Um assunto que deveria constituir alarme social tem passado praticamente despercebido na imprensa e mesmo nas escolas do país. A Associação dos Professores de História tem estado praticamente sozinha na tarefa de sensibilização para a discussão deste assunto. No entanto trata-se de uma matéria que não pode ficar reduzida à estrita defesa da dimensão corporativa.

No actual quadro curricular, a disciplina de História é reduzida em muitas escolas a um único tempo lectivo semanal (90 minutos) e passa a disputar a distribuição dos tempos lectivos semanais com a Geografia, correndo o risco de futuro desaparecimento do currículo como área autónoma de saber.

Esta é uma opção de política educativa que não é nem ingénua, nem obra do acaso; ela é consciente, intencional e premeditada.

Ela é filha de um tempo que anuncia o “fim da história”, que entroniza o pensamento único, que limita as alternativas, tentando apagar a memória, ou guardá-la como objecto estático e inerte num museu, de preferência com as portas fechadas, não vá ela ganhar vida. Ela é filha de uma opção que abjura o passado e diviniza o presente, divulgado em cartilha simples, que até os simples compreendem.

Tadeu da Silva, um iminente historiador da educação brasileiro sustenta que vivemos num momento histórico em que os mestres pensadores oficiais, instalados nos escritórios governamentais, nos institutos de investigação, nos media, na universidade, nos entregam pronto e embalado o sentido e o significado do social, do político e do educativo: é o pensamento prêt-à.porter.

Diz o autor que como num catecismo, temos as perguntas e também as respostas. Os problemas? São os gastos sociais, os obstáculos ao crescimento do mercado, o papel regulador do Estado. Os culpados? São os funcionários públicos, os movimentos sociais, os pobres. As soluções? É a flexibilização do mercado de trabalho, a desregulamentação, a competitividade, a adaptação à “nova ordem mundial” e à globalização.

O desafio que se coloca aos professores de História e a todos nós educadores em geral, é termos a capacidade não só de darmos outras respostas às perguntas atrás formuladas, mas principalmente de fazer outras perguntas. A anorexização do ensino e da aprendizagem da História é precisamente porque ela tem potencialidades de criar instrumentos para uma análise aprofundada da realidade social, política, económica e educativa. A História é apostada como um saber perigoso porque preserva a memória, contribuindo para o desenvolvimento da consciência social, porque recorda a construção de um passado colectivo que não se esgota num presente deificado pela mercadoria.

A História transforma a memória em experiência. A memória individual tem como referencial essa memória colectiva, que é trabalhada na forja de identidades que se vão enriquecendo à medida que nova informação desse passado é recriada no nosso imaginário.

A memória contém passado, presente e sobretudo futuro. O que há-de vir, é potenciado pelo que é, que é produto do que já foi. Prescindir da memória é minar os alicerces do edifício que é a consciência cívica dos povos. É por isso que não se pode exterminá-la!