... a defesa das ideias


Às quartas • 02/06/2004
Luciano Pereirapor Luciano Pereira
(
Doutor em Línguas e Literaturas Românicas,
Professor Adjunto e Coordenador do Departamento de Línguas da E.S.E. de Setúbal
)


Em nome do mérito 

Após uma aparatosa, e mais do que necessária, reformulação da legislação dos concursos referentes à colocação dos professores, com a aprovação da maioria do mundo sindical, e após uma anunciada “revolução informatizada” em nome dos interesses humanistas que todos aplaudem, deparamo-nos, incrédulos, com o maior desaire da história recente da nossa Administração Pública. A “ousadia das mudanças profundas” apregoada pela tutela redundou num dos mais clamorosos e patéticos fracassos de que se tem memória!

Os representantes dos diferentes partidos da oposição, com ou sem experiência de Governo, mas todos com sentido de Estado que baste, lá vão, mais ou menos timidamente, expressando a necessidade de se apurar responsabilidades técnicas e políticas. (Uma forma elegante de dizer que quem não sabe gerir os recursos colectivos deve ter o bom senso de não o fazer!)

Em meu entender, nunca, jamais, nenhum governo gozou de tanta compreensão, tolerância e, diria até, de tão generosa solidariedade institucional. Ora, apesar deste verdadeiro estado de graça, e do mais alto espírito de responsabilidade manifestado por todos os parceiros sociais, nem tão pouco se dignou construir o consenso tão necessário para uma Lei de bases do sistema Educativo eficaz e duradoura.

 Alguns enfatizam a dimensão da catástrofe: num universo de 120.000 professores, verificam-se mais de 40.000 erros. A própria tutela identifica erros de palmatória e não se inibe de culpar os técnicos que herdou das sucessivas levas dos famosos “jobs for the roses”, fingindo ignorar os vários sedimentos laranjas que foram progressivamente azedando todo o sistema.

Qualquer leigo na matéria, embora desculpe o erro, não pode deixar de ficar profundamente indignado perante fenómeno tão grosseiro e primário. Em primeiro lugar, porque não se deve utilizar um instrumento que não se domina; em segundo, porque quando se percebe que não se está preparado para um exame de uma determinada época deixa-se para a época seguinte; em terceiro, porque compete ao Ministério dar o exemplo em matéria de mérito, competência, eficácia, rigor e, antes de tudo, bom senso!

As desculpas esfarrapadas raiam o ridículo… Então, não é que entregaram à “Compta”, em forma de empreitada, a responsabilidade do tratamento informático dos dados do concurso e foram tratar de assuntos mais sérios e prementes! Então, ninguém pressentiu, nem um só instante, que há certas coisas que só podem ser realizadas na presença dos interessados? Que entende o programador de legislação e que sabe ele de prioridades e das múltiplas excepções…? Ninguém se lembrou de se fazer uma simulação, um ensaio antes de se publicar os dados definitivos?

É assim que queremos mobilizar a sociedade em torno do grande desígnio nacional que constitui a Educação? É assim que queremos lutar contra as colocações tardias que tanto prejudicam os alunos no início dos anos lectivos? É assim que queremos trazer maior estabilidade às escolas e maior humanismo a um sistema que obriga o docente a viver com a casa às costas, impossibilitando-o de criar laços de amizade e de solidariedade com as famílias que deveria acompanhar?

A tutela reconhece que o acontecido nunca deveria ter acontecido mas, com o maior despudor, auto elogia-se em relação à concepção do modelo e sacode a água do capote no que diz respeito aos erros da sua aplicação, chegando a invocar (com um comovente excesso de zelo) que se deve manter, por razões de transparência política, longe dos processos dos concursos. (Muito certamente para evitar os fenómenos das cunhas em relação aos quais se tornou, compreensivelmente, hiper-sensível.) Implora serenidade para que os programadores informáticos possam exercer a sua criatividade, para que os técnicos possam recuperar a sua auto-estima e para que possamos todos recuperar os 120.000 contos investidos nos equipamentos informáticos. Confessa existirem erros de vária natureza, promete apurar as várias responsabilidades, promete um novo Software. Infelizmente, só não nos promete uma nova tutela!

Aí reside o fulcro da questão. Quanto tempo mais nos contentaremos com a mediocridade em nome da Democracia? Como recuperar a nossa auto-estima, a nossa segurança, a nossa excelência, sem precisarmos de recorrer às fanáticas e milionárias emoções dos “futebóis”? Que fazer com a incompetência que teima em gerir os nossos destinos com tanta leviandade e inconsciência? Que exigir a quem tanto exige?

Quem contratou a empresa que fracassou? Quem gere a equipa que não se soube articular com a dita empresa? Quem decidiu aplicar precipitadamente um modelo experimental sem garantias de qualidade e sem, previamente, o ter posto à prova? Quem provoca inseguranças e desconfianças? Quem se desculpa culpabilizando os professores por não saberem preencher simples formulários? Quem se desculpa culpabilizando as equipas técnicas por serem o que são? Quem assim procede merecerá a nossa confiança?

Vivemos tempos difíceis, e todos sabemos o quanto “das tripas fazemos coração”. E é do coração que vos digo que quem assim procede não tem nenhum tipo de mérito. Quem não tem nenhum tipo de mérito não nos merece. Quem não nos merece não nos pode representar; e quem não nos pode representar perde qualquer legitimidade para nos poder governar!