... a defesa das ideias


 • 15-06-2005
 

por António Ângelo Vasconcelos
(Professor Adjunto Equiparado/Departamento de música)


 

Ensino à bolonhesa ou como a velhinha pode ser fatal para nêspera

Muitas são as razões para que ciclicamente apareça, na agenda e na retórica política de diferentes actores sociais e institucionais, a afirmação da pertinência da educação e da formação no desenvolvimento da sociedade portuguesa assim como a necessidade da sua reformulação. O último livro de António Nóvoa “Evidentemente” (ASA, 2005) ajuda a compreender melhor algum do senso comum predominante

No caso do ensino superior – onde coexiste a par de inovações importantes sob o ponto de vista da formação e da investigação, a rotina, a reprodução de ideias, o academismo, a desregulação e muito laxismo – a necessidade de reforma tem-se afigurado um aspecto importante. Necessidade de reforma que apresenta argumentos muitas vezes paradoxais situados entre as necessidades do mercado, a competitividade até à defesa de teses menos funcionalistas.

Por outro lado, a educação e a formação na construção europeia afirma-se como um elemento estruturante em particular a constituição de um espaço europeu de ensino superior de forma a dar corpo àquilo que alguns designam por ‘construção da sociedade do conhecimento’

Neste contexto, a Declaração de Bolonha, assinada em 19 de Junho de 1999 por 29 países incluindo Portugal, reconhecia que “a Europa do conhecimento constitui factor insubstituível para o crescimento humano e social, sendo componente indispensável para a consolidação e para o enriquecimento da cidadania europeia, capaz de fornecer aos seus cidadãos as necessárias competências para encarar os desafios do novo milénio (…)”. Para além da “obtenção de maior compatibilidade e de maior comparabilidade dos sistemas do ensino superior” esta declaração assinalava o “objectivo de elevar a competitividade internacional do sistema europeu do ensino superior” de modo a “assegurar que o sistema europeu do ensino superior consiga adquirir um grau de atracção mundial semelhante ao das nossas extraordinárias tradições cultural e científica”.

Num artigo do Expresso de 7 de Maio (p.p.) intitulado “Bolonha à portuguesa” escrevia-se que “os países ou as universidades que rejeitarem os princípios de Bolonha vão sofrer grandes pressões da concorrência” .

Ora estas ideias de competitividade, ‘atracção mundial’, economia e mercado que faça frente à concorrência dos sistemas americano e japonês (só para citar dois exemplos) não têm sido devidamente discutidas, nem enquadradas. Apesar de algumas vozes mais lúcidas como por exemplo Alberto Amaral, presidente do Centro de Investigação de Políticas do Ensino Superior, que numa entrevista publicada no Público de 10 de Janeiro último criticava alguns aspectos desta Declaração por considerar que ela tem muito mais a ver com questões de ordem económica do que com questões académicas ou formativas.

Pela minha parte não questiono algumas dimensões desta declaração no que se referem (1) à pertinência de pensar e reestruturar o ensino superior no contexto europeu, (2) à “promoção da mobilidade, (3) à internacionalização, (4) ao “estabelecimento de um sistema de créditos” que valorizem outras dimensões da educação e formação que não apenas a adquirida na escola.

O que questiono é a ‘ditadura’ da economia, do mercado, da competitividade sobre outras lógicas de pensar e de organizar a educação e a formação. Isto por uma razão muito simples: a educação e a formação não são mercadorias. A ‘regulação’, ‘controlo de produção’, ‘produto final’ e ‘clientes’ adquirem outros contornos. Em educação o que é mais distintivo é o processo. Ao contrário de outros meios de produção, na educação e na cultura a qualidade varia na razão directa do investimento.

Daí a importância de contrapor à ‘ditadura da economia de mercado neo-liberal’ a assunção de uma educação e de uma escola públicas com características distintivas em que a formação científica, artística, pedagógica e a organização não se transformem num mero “hipermercado de formação à la carte”, que, com as suas estratégias de marketing, tente vender “um determinado produto” em que as pessoas passam a ser “clientes, utentes e/ou consumidores” como se de mercadorias também se tratassem.

Enquanto na educação, na formação e na cultura predominarem lógicas assentes nas necessidades do mercado, sempre voláteis e contingenciais, estão condenadas a um triplo constrangimento: nem satisfazem as necessidades do mercado, nem as expectativas das pessoas e das comunidades, nem dão corpo a um ensino superior de excelência.

As indecisões nas políticas centrais, aliadas ao pouco trabalho crítico, científico e pedagógico de diferentes instâncias formativas, não têm permitido uma reflexão aprofundada acerca dos modos de pensar, organizar e operacionalizar a educação e a formação que transcenda as questões da economia de mercado, da empregabilidade, da competitividade.
 

A questão deve centrar-se mais no eixo das expectativas do que nas necessidades, mais no eixo prospectivo do que numa mera resposta ao presente. Daí a tarefa de passar de uma lógica utilitarista para uma lógica da pertinência, de uma lógica da economia e do mercado para uma lógica das pessoas, de uma lógica de conformidade para uma lógica de gestão do imprevisível, de uma lógica assente no ensino e no professor para uma lógica dos saberes e da aprendizagem do estudante.

Apesar da urgência do tempo presente ou as instituições fazem um trabalho sério e sustentado tentando encontrar outros modos de olhar, pensar e de organizar a educação e a formação ou acontece o que aconteceu à nêspera no poema “Rifão Quotidiano” de Mário Henrique Leiria. É comida pela velhinha. E porquê? Porque ficou à espera, sentada, a ver o que é que acontecia. Ou seja, não soube (não quis?) construir o futuro de um outro modo. E não será tarefa do ensino superior ajudar a criar possibilidades naquilo que parece ser impossível?