... a defesa das ideias


Às quartas • 27/01/2005

por Luísa Solla
(Departamento de Línguas da ESE de Setúbal)

Uma prenda de Natal ou o “Papai Noel entrou pela porta dos fundos”

 

A primeira página do Diário de Notícias do dia 23 de Dezembro de 2004 trazia uma notícia, uma espécie de prenda de Natal, que de tão estranha me lembrou o verso acima citado. A notícia revela a intenção deste governo (e se o próximo for do PS também será assim…) de introduzir, com carácter obrigatório, o ensino do Inglês no 1º ciclo do ensino básico (CEB). Sendo obrigatório, passa a ser uma disciplina que todos os alunos deverão aprender, exigindo, portanto, professores habilitados, para a ensinar. Para melhor se compreender como esta medida é demagógica e desajustada da realidade educativa portuguesa, aconselho a leitura da crónica de António Barreto publicada no Jornal Público, em 26 de Dezembro. Aí se pode ler como esta medida é mais uma para não cumprir.
 

Acrescentarei agora mais alguns dados que permitirão compreender melhor a situação actual, em termos de ensino de uma língua estrangeira neste nível de ensino.

O ensino de línguas estrangeiras a crianças numa idade considerada “precoce”, como alguns lhe chamam, quer apenas dizer, como bem explica Rachel Cohen (1991), antes da “idade institucional”, o que em Portugal quer dizer antes do 5º ano do ensino básico. Esta situação não é nova na Europa. Tem tradição em escolas e colégios privados e tem sido objecto de experimentação, em diferentes modalidades e com diferentes resultados, no ensino público em vários países europeus desde os anos 70.

Em Portugal, o ensino de uma língua estrangeira a crianças no 1º CEB existe na legislação desde 1989. É apresentado como opcional, lúdico e com primazia dada à oralidade, sendo livre a escolha da língua a aprender. Cabe às escolas a gestão de todo o processo desde a escolha da língua, ao recrutamento do professor, à concepção ou utilização de materiais que são escassos ou praticamente inexistentes no mercado português e ainda a organização dos espaços e tempos, assim como a concepção do programa de aprendizagem.

Naturalmente que o seu carácter opcional desobrigou a tutela a assumir a responsabilidade do processo, nunca exigindo às instituições de formação de professores que incluíssem nos seus curricula, programas de línguas estrangeiras nem de metodologias de ensino das mesmas. Também pouco se preocupou em saber o que têm feito as escolas de 1º CEB nesse domínio a não ser a emitindo algumas circulares com orientações dispersas.

Mais recentemente e no âmbito da reorganização curricular, o Decreto-Lei 6/2001 mantém o que a legislação anterior dispunha, retirando apenas o “carácter” lúdico ao processo de aprendizagem.

O Currículo Nacional - competências essenciais (2001) consagra também um capítulo ao ensino de uma língua estrangeira no 1º CEB, onde são definidos “Alguns princípios orientadores”, entre os quais destaco: Sensibilização à diversidade linguística e cultural” e “Competência comunicativa integradora das várias linguagens”. Esta fase da vida educativa foi uma esperança para os professores e formadores que acreditaram que estando consagrado no Currículo Nacional, o processo seria apoiado, desenvolvido e sustentado. Não foi.

A nível europeu o processo tem evoluído favoravelmente e da fase de experimentação controlada passou-se já, em alguns países, à obrigatoriedade, no respeito pelas Recomendações do Conselho da Europa que defendem para todo o cidadão europeu o domínio de pelo menos duas línguas estrangeiras. O que se defende no Quadro Europeu de Referência para as Línguas é a construção de uma Europa compósita, plurilingue e pluricultural onde a intercompreensão faça o seu caminho. O Portfolio Europeu de Línguas vem trazer também mais um novo estímulo à aprendizagem das línguas estrangeiras assim como o Processo de Bolonha, no âmbito do ensino superior.

A preocupação em definir políticas nacionais em relação ao ensino de línguas nunca foi sentida em Portugal, onde os governantes assumem uma dualidade de comportamentos: externamente subscrevem as Recomendações e Convenções europeias e internamente pouco fazem a não ser promessas, em período eleitoral, como esta última. Muitas vezes, como presumo que deve ser este caso, nem sabem do que estão a falar. Quando as eleições se ganham, ou seja quando os partidos entram “pela porta da frente” para tomarem conta dos lugares que lhes permitiriam cumpri-las, descobrem que afinal não têm interesse, são difíceis de realizar ou exigem custos que não querem desperdiçar. Por isso é mais fácil “entrar pela porta dos fundos”, pois o risco de se ser visto é menor. Mas há quem esteja atento e conheça o terreno, não podendo deixar de denunciar esta “boa intenção” que une o PSD e o PS.

Passarei agora a enunciar apenas algumas perguntas que continuam sem resposta. Naturalmente que as respostas são várias e exigem análise, estudo e debate para que se tomem decisões adequadas. O espaço desta crónica não me permite discuti-las, mas aqui fica o desafio para pais, educadores, professores e… eleitores.

As perguntas servem para crianças do ensino básico mas também em idade pré-escolar:

(i) Nesta idade deve a criança aprender uma língua estrangeira ou deve apenas ser sensibilizada a outras línguas e culturas?

(ii) Para que serve a língua estrangeira às crianças desta idade? Para comunicar ao seu nível? Para desenvolver atitudes favoráveis em relação à aprendizagem das línguas estrangeiras? Para conhecer e melhor compreender diferenças culturais?

(iii) Há uma idade óptima para se iniciar a aprendizagem de uma língua estrangeira?

(iv) Que problemas se põem a nível do currículo da língua estrangeira se ela for iniciada no 1º CEB? No ciclo seguinte é dada continuidade ou deve ser iniciada a 2ª LE? Que custos estas decisões têm para o sistema educativo?

(v) Que língua estrangeira escolher para começar? Porquê? Uma língua próxima da sua língua materna facilita a aprendizagem? É preferível uma língua mais distante mas mais usada no seu contexto de proximidade? A escolha da língua de iniciação vai criar ou matar o interesse e a necessidade de aprender outras?

(vi) Quem deve ser o professor? O professor do 1º ciclo a quem deve ser ministrada a formação em língua e ensino de língua ou um professor com essa formação mas de outro nível de ensino? Que custos estas decisões têm para o sistema educativo? E para a criança?

Tornar obrigatório o que nunca se conseguiu apoiar convenientemente nestes anos e obrigar à escolha de uma só língua quando o movimento na Europa é de promoção da diversidade e do plurilinguismo, não parece ser uma boa ideia.

Já só me resta citar o título do poema de Carlos Drummond de Andrade de onde foi retirado o verso citado no título desta crónica e que é o seguinte: Papai Noel às avessas. Oportuno, não acham?

Sugiro a sua leitura. Entre outros lugares, podem encontrá-lo em: http://www.releituras.com/drummond_papainoel.asp