por Luísa Solla
(Departamento de Línguas da ESE de Setúbal)
Uma prenda de Natal
ou o “Papai Noel entrou pela porta dos fundos”
A
primeira página do Diário de Notícias do dia 23 de Dezembro de 2004
trazia uma notícia, uma espécie de prenda de Natal, que de tão estranha
me lembrou o verso acima citado. A notícia revela a intenção deste
governo (e se o próximo for do PS também será assim…) de introduzir,
com carácter obrigatório, o ensino do Inglês no 1º ciclo do ensino
básico (CEB). Sendo obrigatório, passa a ser uma disciplina que
todos os alunos deverão aprender, exigindo, portanto, professores
habilitados, para a ensinar. Para melhor se compreender como esta
medida é demagógica e desajustada da realidade educativa portuguesa,
aconselho a leitura da crónica de António Barreto publicada no Jornal
Público, em 26 de Dezembro. Aí se pode ler como esta medida é mais
uma para não cumprir.
Acrescentarei
agora mais alguns dados que permitirão compreender melhor a situação
actual, em termos de ensino de uma língua estrangeira neste nível
de ensino.
O ensino de
línguas estrangeiras a crianças numa idade considerada “precoce”,
como alguns lhe chamam, quer apenas dizer, como bem explica Rachel
Cohen (1991), antes da “idade institucional”, o que em Portugal
quer dizer antes do 5º ano do ensino básico. Esta situação não é
nova na Europa. Tem tradição em escolas e colégios privados e tem
sido objecto de experimentação, em diferentes modalidades e com
diferentes resultados, no ensino público em vários países europeus
desde os anos 70.
Em Portugal,
o ensino de uma língua estrangeira a crianças no 1º CEB existe na
legislação desde 1989. É apresentado como opcional, lúdico
e com primazia dada à oralidade, sendo livre a
escolha da língua a aprender. Cabe às escolas a gestão
de todo o processo desde a escolha da língua, ao recrutamento do
professor, à concepção ou utilização de materiais que são escassos
ou praticamente inexistentes no mercado português e ainda a organização
dos espaços e tempos, assim como a concepção do programa de aprendizagem.
Naturalmente
que o seu carácter opcional desobrigou a tutela a assumir a responsabilidade
do processo, nunca exigindo às instituições de formação de professores
que incluíssem nos seus curricula, programas de línguas estrangeiras
nem de metodologias de ensino das mesmas. Também pouco se preocupou
em saber o que têm feito as escolas de 1º CEB nesse domínio a não
ser a emitindo algumas circulares com orientações dispersas.
Mais recentemente
e no âmbito da reorganização curricular, o Decreto-Lei 6/2001
mantém o que a legislação anterior dispunha, retirando apenas o
“carácter” lúdico ao processo de aprendizagem.
O Currículo
Nacional - competências essenciais (2001) consagra também um
capítulo ao ensino de uma língua estrangeira no 1º CEB, onde são
definidos “Alguns princípios orientadores”, entre os quais destaco:
Sensibilização à diversidade linguística e cultural” e “Competência
comunicativa integradora das várias linguagens”. Esta fase da vida
educativa foi uma esperança para os professores e formadores que
acreditaram que estando consagrado no Currículo Nacional, o processo
seria apoiado, desenvolvido e sustentado. Não foi.
A nível europeu
o processo tem evoluído favoravelmente e da fase de experimentação
controlada passou-se já, em alguns países, à obrigatoriedade, no
respeito pelas Recomendações do Conselho da Europa que defendem
para todo o cidadão europeu o domínio de pelo menos duas
línguas estrangeiras. O que se defende no Quadro Europeu
de Referência para as Línguas é a construção de uma Europa compósita,
plurilingue e pluricultural onde a intercompreensão faça o seu caminho.
O Portfolio Europeu de Línguas vem trazer também mais um
novo estímulo à aprendizagem das línguas estrangeiras assim como
o Processo de Bolonha, no âmbito do ensino superior.
A preocupação
em definir políticas nacionais em relação ao ensino de línguas nunca
foi sentida em Portugal, onde os governantes assumem uma dualidade
de comportamentos: externamente subscrevem as Recomendações e Convenções
europeias e internamente pouco fazem a não ser promessas, em período
eleitoral, como esta última. Muitas vezes, como presumo que deve
ser este caso, nem sabem do que estão a falar. Quando as eleições
se ganham, ou seja quando os partidos entram “pela porta da frente”
para tomarem conta dos lugares que lhes permitiriam cumpri-las,
descobrem que afinal não têm interesse, são difíceis de realizar
ou exigem custos que não querem desperdiçar. Por isso é mais fácil
“entrar pela porta dos fundos”, pois o risco de se ser visto é menor.
Mas há quem esteja atento e conheça o terreno, não podendo deixar
de denunciar esta “boa intenção” que une o PSD e o PS.
Passarei agora
a enunciar apenas algumas perguntas que continuam
sem resposta. Naturalmente que as respostas são várias e exigem
análise, estudo e debate para que se tomem decisões adequadas. O
espaço desta crónica não me permite discuti-las, mas aqui fica o
desafio para pais, educadores, professores e… eleitores.
As perguntas servem para
crianças do ensino básico mas também em idade pré-escolar:
(i) Nesta idade deve
a criança aprender uma língua estrangeira ou deve apenas ser sensibilizada
a outras línguas e culturas?
(ii) Para que serve a
língua estrangeira às crianças desta idade? Para comunicar ao seu
nível? Para desenvolver atitudes favoráveis em relação à aprendizagem
das línguas estrangeiras? Para conhecer e melhor compreender diferenças
culturais?
(iii) Há uma idade óptima
para se iniciar a aprendizagem de uma língua estrangeira?
(iv) Que problemas se
põem a nível do currículo da língua estrangeira se ela for iniciada
no 1º CEB? No ciclo seguinte é dada continuidade ou deve ser iniciada
a 2ª LE? Que custos estas decisões têm para o sistema educativo?
(v) Que língua estrangeira
escolher para começar? Porquê? Uma língua próxima da sua língua
materna facilita a aprendizagem? É preferível uma língua mais distante
mas mais usada no seu contexto de proximidade? A escolha da língua
de iniciação vai criar ou matar o interesse e a necessidade de aprender
outras?
(vi) Quem deve
ser o professor? O professor do 1º ciclo a quem deve ser ministrada
a formação em língua e ensino de língua ou um professor com essa
formação mas de outro nível de ensino? Que custos estas decisões
têm para o sistema educativo? E para a criança?
Tornar obrigatório
o que nunca se conseguiu apoiar convenientemente nestes anos e obrigar
à escolha de uma só língua quando o movimento na Europa é de promoção
da diversidade e do plurilinguismo, não parece ser uma boa ideia.
Já só me resta
citar o título do poema de Carlos Drummond de Andrade de onde foi
retirado o verso citado no título desta crónica e que é o seguinte:
Papai Noel às avessas. Oportuno, não acham?
Sugiro a sua
leitura. Entre outros lugares, podem encontrá-lo em: http://www.releituras.com/drummond_papainoel.asp
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