... a defesa das ideias


• 28-12-2005 •
Educação
por Cristina Gomes da Silva
(Professora Adjunta da ESE de Setúbal)


 

Afinal, de que nos serve, sermos livres? Ou será que o não somos?

“O nosso século demonstra que a vitória dos ideais de justiça e igualdade é sempre efémera, mas também que, se conseguirmos manter a liberdade, é sempre possível recomeçar. (...) Não há necessidade de desesperar, mesmo nas situações mais desesperadas.” Leo Valiani (historiador, Itália) in Eric Hobsbawm, A era dos extremos, Lisboa, Ed. Presença, 1996, p:14
 

Na citação acima transcrita o autor refere-se ao século XX. Porém, a herança, pesada, transitou para o século XXI. Para o bem e para o mal. Imbuída de optimismo, a atitude subjacente a esta afirmação nem sempre consegue estar presente nas inúmeras situações mais desesperadas que vão sendo vividas por todos e cada um de nós. É também claro que, para quem viveu os horrores de uma guerra, seja ela qual for, as consequências desastrosas de uma qualquer catástrofe natural, ou a usurpação da liberdade prescrita por uma qualquer ditadura, esta frase faz muito mais sentido. E nós, portugueses, devíamos sabê-lo.
 

A nossa era ergueu como bandeira a liberdade, resta saber o que fazer dela. Parece-me que da forma como é entendida individualmente apenas serve para que alguns imponham aos outros as suas categorias de pensamento e os seus valores. Logicamente sempre em movimento unívoco – do mais forte para o mais fraco –. Em Portugal continuam a ser grandes os atropelos à liberdade e, por vezes, ela não é mais do que um slogan que alguns agitam, justamente nas situações mais desesperadas. Não sabemos doseá-la, nem assumi-la como um valor de cidadania e responsabilidade, e isto acontece nos mais variados contextos e com os mais diversos protagonistas. Gostava de falar aqui das relações que o Estado estabelece com os seus cidadãos e que nos últimos tempos têm constituído muitos e esclarecedores exemplos. Escolho apenas três : as escutas telefónicas, o funcionamento dos tribunais e as responsabilidades da Segurança Social.
 

Quanto ao primeiro, já muito foi escrito mas não deixa de ser estranho que os responsáveis pela sua realização continuem a poder usá-las de forma indiscriminada, abusiva e tendo como consequência uma abominável invasão da privacidade dos indivíduos que, vivendo num Estado Democrático, em princípio mais ‘amigo’ dos seus cidadãos, os expõe e vigia esperando a oportunidade para os punir, muitas vezes sem qualquer justificação aceitável. Onde ficam a liberdade, o direito de defesa, o direito à privacidade, à dignidade, em suma?
 

A arbitrariedade dos tribunais é conhecida e em muitos casos extremamente lesiva dos direitos dos cidadãos. A cegueira da justiça é, de facto, e lamentavelmente, cegueira e não imparcialidade como seria de esperar. A balança nem sempre está bem equilibrada e a desculpa de que os juizes são seres humanos, logo seres errantes na busca da pesos justos, ajuda a relativizar a sua importância e o peso de certas decisões, mas ajuda também a desconfiar deles e afinal da sua suposta imparcialidade. É estranho que, justamente os juizes, não tenham, na prática, de prestar contas a ninguém pelas decisões que proferem e pelos males que essas decisões vão causando. Um deles é, seguramente, o abuso da prática da prisão preventiva em casos em que os únicos indícios que levam um juiz a decidir são os seus valores, os seus humores e as suas convicções. Será que eles conseguem dormir descansados, quando mais tarde se verifica que, em muitos casos, as provas reunidas afinal só provam inocências e não culpas? Tenho para mim que os processos de investigação deixam muito a desejar e que os investigadores ainda têm muito para aprender.
 

O modo como a Segurança Social assume as suas responsabilidades também deve deixar qualquer um de “pé atrás”. É lamentável que mesmo nas situações mais desesperadas os responsáveis (?) venham sempre evocar desconhecimento. É justamente esse desconhecimento que deve ser punido, eles estão lá para conhecer e não para desconhecer. A esse desconhecimento eu chamaria irresponsabilidade e essa irresponsabilidade tem tido consequências muitas vezes trágicas, como foi o caso das duas meninas mortas na passada sexta-feira, ou mais remotamente como foi o arrastado caso Casa Pia. Este último mais complicado ainda porque acontece dentro de portas. São só dois exemplos, e sei que poderia nomear muitos mais em que a actuação dos serviços da Segurança Social é, seguramente, notável, mas estes ensombram-na de tal maneira que prevalecem sobre os outros.

Vai longo o desabafo negativo, mas mantenho sempre a secreta esperança de que um dia nos daremos conta de que “Se conseguirmos manter a liberdade, é sempre possível recomeçar”. Mas estou dubitativa relativamente ao ponto a partir do qual, no caso de Portugal, vale a pena recomeçar.