“O nosso século demonstra que a
vitória dos ideais de justiça e igualdade é sempre efémera, mas também
que, se conseguirmos manter a liberdade, é sempre possível recomeçar.
(...) Não há necessidade de desesperar, mesmo nas situações mais
desesperadas.” Leo Valiani (historiador, Itália) in Eric Hobsbawm, A era
dos extremos, Lisboa, Ed. Presença, 1996, p:14
Na citação acima transcrita o autor refere-se ao século XX. Porém, a
herança, pesada, transitou para o século XXI. Para o bem e para o mal.
Imbuída de optimismo, a atitude subjacente a esta afirmação nem sempre
consegue estar presente nas inúmeras situações mais desesperadas
que vão sendo vividas por todos e cada um de nós. É também claro que,
para quem viveu os horrores de uma guerra, seja ela qual for, as
consequências desastrosas de uma qualquer catástrofe natural, ou a
usurpação da liberdade prescrita por uma qualquer ditadura, esta frase
faz muito mais sentido. E nós, portugueses, devíamos sabê-lo.
A nossa era ergueu como bandeira a liberdade, resta saber o que fazer
dela. Parece-me que da forma como é entendida individualmente apenas
serve para que alguns imponham aos outros as suas categorias de
pensamento e os seus valores. Logicamente sempre em movimento unívoco –
do mais forte para o mais fraco –. Em Portugal continuam a ser grandes
os atropelos à liberdade e, por vezes, ela não é mais do que um
slogan que alguns agitam, justamente nas situações mais
desesperadas. Não sabemos doseá-la, nem assumi-la como um valor de
cidadania e responsabilidade, e isto acontece nos mais variados
contextos e com os mais diversos protagonistas. Gostava de falar aqui
das relações que o Estado estabelece com os seus cidadãos e que nos
últimos tempos têm constituído muitos e esclarecedores exemplos. Escolho
apenas três : as escutas telefónicas, o funcionamento dos tribunais e as
responsabilidades da Segurança Social.
Quanto ao primeiro, já muito foi escrito mas não deixa de ser
estranho que os responsáveis pela sua realização continuem a poder
usá-las de forma indiscriminada, abusiva e tendo como consequência uma
abominável invasão da privacidade dos indivíduos que, vivendo num Estado
Democrático, em princípio mais ‘amigo’ dos seus cidadãos, os expõe e
vigia esperando a oportunidade para os punir, muitas vezes sem qualquer
justificação aceitável. Onde ficam a liberdade, o direito de defesa, o
direito à privacidade, à dignidade, em suma?
A arbitrariedade dos tribunais é conhecida e em muitos casos
extremamente lesiva dos direitos dos cidadãos. A cegueira da justiça é,
de facto, e lamentavelmente, cegueira e não imparcialidade como seria de
esperar. A balança nem sempre está bem equilibrada e a desculpa de que
os juizes são seres humanos, logo seres errantes na busca da pesos
justos, ajuda a relativizar a sua importância e o peso de certas
decisões, mas ajuda também a desconfiar deles e afinal da sua suposta
imparcialidade. É estranho que, justamente os juizes, não tenham, na
prática, de prestar contas a ninguém pelas decisões que proferem e pelos
males que essas decisões vão causando. Um deles é, seguramente, o abuso
da prática da prisão preventiva em casos em que os únicos indícios que
levam um juiz a decidir são os seus valores, os seus humores e as suas
convicções. Será que eles conseguem dormir descansados, quando mais
tarde se verifica que, em muitos casos, as provas reunidas afinal só
provam inocências e não culpas? Tenho para mim que os processos de
investigação deixam muito a desejar e que os investigadores ainda têm
muito para aprender.
O modo como a Segurança Social assume as suas responsabilidades
também deve deixar qualquer um de “pé atrás”. É lamentável que
mesmo nas situações mais desesperadas os responsáveis (?) venham
sempre evocar desconhecimento. É justamente esse desconhecimento que
deve ser punido, eles estão lá para conhecer e não para desconhecer. A
esse desconhecimento eu chamaria irresponsabilidade e essa
irresponsabilidade tem tido consequências muitas vezes trágicas, como
foi o caso das duas meninas mortas na passada sexta-feira, ou mais
remotamente como foi o arrastado caso Casa Pia. Este último mais
complicado ainda porque acontece dentro de portas. São só dois exemplos,
e sei que poderia nomear muitos mais em que a actuação dos serviços da
Segurança Social é, seguramente, notável, mas estes ensombram-na de tal
maneira que prevalecem sobre os outros.
Vai longo o desabafo negativo, mas mantenho sempre a secreta esperança
de que um dia nos daremos conta de que “Se conseguirmos manter a
liberdade, é sempre possível recomeçar”. Mas estou dubitativa
relativamente ao ponto a partir do qual, no caso de Portugal, vale a
pena recomeçar. |