... a defesa das ideias


 • 30-03-2005
 
por Albérico Afonso
(Professor Adjunto do Departamento Ciência Multiculturalidade e Desenvolvimento)


 

A canalha é indigna de ser esclarecida

Hoje em dia nenhum dirigente político ou candidato a governante tornaria públicas ou se inspiraria nas recomendações que Voltaire fazia ao rei da Prússia em 1757: “A canalha é indigna de ser esclarecida (…) é essencial que haja cozinheiros ignorantes (…) e o que é de lei é que o povo seja guiado e não que seja instruído”. Pelo contrário a generalidade dos dirigentes políticos actuais por convicção ou por pressão do povo “ignorante” levam a sério as recomendações que na mesma época Diderot fazia à imperatriz da Prússia, defendendo a instrução para todos: “É bom que todos saibam ler, escrever e contar”, dizia ele, “desde o primeiro-ministro ao mais humilde dos camponeses”. E justificava: “Porque é mais difícil explorar um camponês que sabe ler do que um analfabeto” (Arroyo,2004).

Este intróito vem a propósito da leitura recente que fiz do programa do actual governo socialista. E de facto, no que diz respeito às políticas educativas, se há algumas das medidas preconizadas com as quais não me identifico, há outras que merecem a minha concordância, porquanto são medidas que podem e devem ser levadas a sério e que exigem uma postura propositiva por parte dos vários actores sociais.

No que são consideradas as “ambições para a legislatura”, sublinha-se que: “As escolas são o centro do sistema educativo. Devem estruturar-se numa rede coerente de recursos de educação e formação ao longo do território. É necessário consolidar a dinâmica dos agrupamentos das escolas do ensino básico, numa lógica em que a organização seja instrumental face às necessidades educativas. (…)

O governo considera desejável uma maior autonomia das escolas que garanta a sua capacidade de gerir os recursos e o currículo nacional, de estabelecer parcerias locais e adequar o seu serviço às características e necessidades próprias dos alunos e das comunidades que servem”.

Não podia estar mais de acordo. É minha convicção que a defesa da escola pública e o reforço da sua qualidade passa pelo aprofundamento da sua inserção social em moldes que permitam cerzir uma nova teia de relações plurais com a comunidade em que se insere.

O fortalecimento de relações com “a comunidade que serve” e a intensificação dos laços de cooperação devem significar potenciar e partilhar os recursos da escola (instalações desportivas, meios audiovisuais, informáticos, salas de conferências, polivalentes …) na perspectiva de serviço às comunidades locais através do desenvolvimento de projectos de parceria que envolvam os diversos protagonistas sociais e potenciem novas formas de intervenção cultural, educativa, artística, desportiva, etc.

Sem querer ser exaustivo, nem querer apresentar um programa pronto a consumir não será no entanto difícil referir alguns projectos que podem beneficiar de e com esta contaminação social: combate à iliteracia, combate à info-exclusão, formação destinada a nova inserção profissional de desempregados, ou ainda formas mais clássicas de actividades em parceria com a comunidade local através da dinamização de conferências, colóquios, exposições, em concomitância a escola deve ainda estar sensível e aberta à participação das iniciativas promovidas pelas comunidades locais.

A escola pública só tem a ganhar se recusar formas de institucionalização e guetização do espaço educativo. A modernização da escola só é exequível como parceira do movimento social de molde a evitar que a educação se reduza à escolarização. Esta será a via que poderá aproximar as crianças e os jovens dos adultos, a escola do trabalho, a educação da produção, a teoria da prática.

A escola pública só tem a ganhar se reconhecer e valorizar a legitimidade do saber da gente comum e se reconhecer que as comunidades locais também são produtoras de saber e de cultura.