O nosso passado recente tem
sido dominado por uma racionalidade centrada e construída sobre a
tecnologia do escrito. A cultura da literacia tem sido altamente
privilegiada na educação em detrimento de outras formas de construção da
significação, inclusivamente verbal. Refiro-me, por exemplo, ao oral.
Neste artigo, procuro argumentar em favor do
alargamento do conceito de literacia a uma multiplicidade de textos e
discursos a que a Didáctica do Português deverá abrir portas. Deste
modo, nos parágrafos que se seguem, centrar-me-ei na dinâmica que
decorre do que se designa “literacia tradicional” às multiliteracias e
aos fundamentos de uma pedagogia da literacia na aula de Português.
Várias são as acepções a que hoje se liga o termo
literacia. Enunciemos algumas: Literacia afectiva, Literacia
interpessoal, Literacia poética, Literacia científica, Literacia
tecnológica, Literacia dos media, Literacia informática,
Literacia intercultural, Literacia visual, Literacia matemática,
Literacia estatística…
Literacia é um termo de origem latina (litteratio,
onis) que, no Império Romano (séc. II D.C.), significava
“estudos elementares” e abarcava saber ler, escrever e contar. Este
conceito primitivo de literacia, reduzido às operações mais simples de
leitura, escrita e cálculo, perdurou muito tempo nas sociedades
ocidentais, confundindo-se com o de alfabetização. À medida que estas
sociedades se foram desenvolvendo e, consequentemente, exigindo novas
competências, foram-se acentuando preocupações com o nível de
conhecimentos das populações, sobretudo ao verificarem-se dificuldades
de leitura e de escrita em situações formais e informais da vida
quotidiana naqueles que haviam frequentado a escola.
O desenvolvimento da linguagem escrita e a sua
expansão não assumiu, contudo, um carácter de universalidade. Com
efeito, das cinco a seis mil línguas faladas no mundo, apenas algumas
centenas possuem representação escrita e, de acordo com dados recentes,
o analfabetismo abrange, ainda hoje, mais de 800 milhões de pessoas. Uma
assinalável percentagem da Humanidade continua privada deste poderoso
meio de desenvolvimento.
Tradicionalmente, melhor dizendo, em sentido
restrito, o termo literacia diz respeito à capacidade de utilização da
língua escrita. Como conceito e produto da civilização da imprensa e da
escrita não contempla os códigos e as linguagens dos outros media
nem as linguagens emergentes dos multimedia. Ora, as
transformações profundas decorrentes do desenvolvimento das tecnologias
de comunicação criaram um ambiente cultural totalmente diferente,
reconfiguraram o papel da linguagem verbal, mormente da palavra escrita,
passando a ser apreciada, a par de outras formas de expressão simbólica,
onde se incluem imagens, sons, música e formas electrónicas de
comunicação.
O mundo actual é perpassado por uma profusão de
textos, cada um organizado de acordo com os seus códigos e convenções,
servindo funções diferentes e requerendo, por isso, competências
específicas. A literacia envolve, inevitavelmente, um conjunto mais
amplo de competências que implicam a construção da significação,
configurada em diferentes formas e em diversos contextos, além de
profundamente imbricada nas práticas culturais e sociais.
Assim sendo, só alargando as competências de acesso,
análise e comunicação a uma ampla variedade de mensagens, de forma a
incluir não só as verbais, mas as imagens, o som, os próprios media
e as mensagens suportadas pelas tecnologias de informação e
comunicação, a literacia será uma competência totalmente conseguida numa
sociedade de informação em rápida e permanente transformação, exigindo,
por isso, multiliteracias para uma efectiva construção do conhecimento.
O conceito de “multiliteracias” complementa, assim, o
conceito de literacia tradicional porque incorpora não só aspectos da
multiplicidade textual, como a crescente importância da diversidade
linguística e cultural. Recorde-se que a literacia tradicional assenta
na linguagem verbal e ainda na noção padronizada e única da língua como
se de um sistema estável se tratasse. Considerar a perspectiva das
multiliteracias obriga a incorporação de outros modos de representação
mais amplos do que as representações possíveis pela linguagem verbal.
Implica a integração de outras formas de construir a significação, de
outros sistemas semióticos e uma expansão do conceito de texto,
relacionada com o visual, o áudio, o espacial, o comportamento, entre
outros, sistemas esses especialmente relevantes nos media, em
especial na televisão e nos hipermedia em que as significações
se constroem e são multimodais.
Estes argumentos transformam, potencialmente, a
substância da pedagogia da Literacia em qualquer língua. A perspectiva
das multiliteracias assenta numa aprendizagem flexível das línguas,
neste caso do português, integrando não só as variedades culturais,
regionais, nacionais, técnicas…, como os canais multimodais, essenciais
à construção textual hoje, numa perspectiva activa de participação na
mudança social, nas várias comunidades em que os cidadãos agem.
São estes aspectos que tornam a literacia, assim
entendida, dificilmente questionável, pois nela se incluem outros
registos e, obviamente, outras linguagens na construção da significação.
Esta perspectiva de literacia reflecte o meio comunicacional complexo em
que os cidadãos se movem e é necessária se se pretender atingir,
plenamente, objectivos educativos mais amplos, de forma a preparar os
estudantes para viver como cidadãos informados e realizados, numa
sociedade democrática.Assegurar a todos os estudantes as aprendizagens e
competências que lhes permitam participar plenamente na vida social é
missão da Educação, para cuja consecução a aprendizagem da Literacia é
fulcral e, por isso mesmo, estas mudanças atravessam, inevitavelmente, a
área de ensino-aprendizagem do Português.
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