... a defesa das ideias


• 14-06-2006 •

Educação
por António Ângelo Vasconcelos
(Professor Adjunto Equiparado/Departamento de música)



 A Educação, as políticas e os actores: das lógicas do mercado a lógicas societárias
 

Ciclicamente a educação e a escola são objecto de profundas discussões. Discussões muitas vezes alicerçadas entre um “discurso catastrófico assente” na “crise” e um outro (mais lúcido, minoritário e menos visível) que, conhecendo a história da educação e os diferentes tipos de políticas e actores envolvidos, não ignoram os desafios diferenciados que se colocam em cada época à educação e à escola, procurando encontrar outros olhares, referências e modos organizativos para a afirmação de uma escola pública como centro educativo e cultural onde interagem mundos, actores e políticas plurais.

O momento que a sociedade portuguesa atravessa é particularmente interessante e um bom indicador da necessidade de ferramentas que ajudem a enquadrar de outros modos as temáticas predominantes, já gastas, pobres e fastidiosas, assentes em quadros de pensamento que afirmam que “os estudantes não aprendem”, de que “a escola não ensina nada”, de que a “educação assenta em pedagogias românticas”, no “eduquês”, na “livre escolha”, na “gestão profissionalizada”, entre outros.

Na minha perspectiva tudo isto está profundamente viciado logo à partida. Viciado por três razões principais. A primeira relacionada com a designada ‘crise’. Só um profundo desconhecimento da História da Educação em Portugal, assim como a História da Educação de outros países - e as diferentes políticas que a corporizaram, é que explica o não entendimento do confronto que caracterizou as diferentes épocas, muitas vezes alicerçadas em truísmos do tipo “no meu tempo é que se aprendia”, “no meu tempo não havia a indisciplina que existe agora”. A segunda, nunca se exigiu tanto à escola como organização e território de formação. Da “escola como organização de acção social”, à “escola como ocupação de tempos livres”, da “educação sexual”, à “educação rodoviária, para os media, ambiental, para a cidadania, para a saúde”. Os exemplos multiplicam-se. A terceira razão assenta no predomínio da economia, das finanças e das lógicas de mercado como modos de regulação social e cultural sobre outro tipo de lógicas e quadros de pensamento societários.

Neste contexto, é urgente a necessidade de recentrar a discussão em torno das finalidades da educação e da escola que ultrapassem os paradigmas dominantes e que não se confundam e não se misturem os planos que dizem respeito ao trabalho e à cultura escolar e os planos que se relacionam com os papéis da sociedade.

Num livro publicado em 1995 e intitulado The End of Education Neil Postman, interrogando-se sobre a crise da escola, procura encontrar novas narrativas que ajudem, por um lado, a construir outros olhares e sentidos em relação à educação, e, por outro, rejeitem alguns deuses, que procuram reorganizar o trabalho educativo e escolar. Deuses da utilidade económica, do consumismo, da tecnologia, do separatismo étnico e cultural. Nos seus argumentos Postman refere que a educação pública depende de criação de narrativas que são partilhadas e da recusa de narrativas que contribuam para a sua alienação.

“O que torna públicas as escolas públicas”, diz este autor, “não é tanto o facto de terem objectivos comuns, mas o facto de os seus alunos terem objectivos comuns. A razão é simples: a educação pública não serve um público; ela cria um público. (…) A questão essencial não se encontra nos computadores, nos exames, na avaliação dos professores, na dimensão das turmas ou noutros aspectos da gestão das escolas. A questão reside em dois pontos, e apenas em dois: a existência de narrativas partilhadas e a capacidade destas narrativas darem um sentido inspirador à educação”

Neil Postman procura estabelecer um debate que, inscrito numa história, recusa a ligeireza e as certezas, alicerçadas numa espécie de “ideologias de salvação nacional”, de “grandes soluções” com que a escola e a educação são confrontadas. No entanto, se é fácil estabelecer alguns consensos em torno de um conjunto de princípios, por exemplo, rigor, trabalho, exames, responsabilidade, as dificuldades surgem quando se interrogam os fins e as narrativas que os estruturam e organizam.

Sem um pensamento assente na história, não para que dela se fique prisioneiro, mas para a partir dela se poder encontrar um pensamento novo, uma filosofia que ajude a imaginar outras lógicas e outras formas de organização dos espaços educativos. Para isso é preciso entender o ensino e a educação não como um processo de treino e de adaptação a determinados modelos educativos e socais pré-programados, mas sim como um processo de compreensão e de intervenção no mundo da cultura, do trabalho, da sociedade, com a consciência “do inacabamento” de fala Paulo Freire.

Por outro lado, a educação não se joga apenas nos espaços e nos tempos da escola. Joga-se em geografias múltiplas em que interagem redes diferenciadas de sentidos e onde se confrontam olhares, saberes e experiências, muitas vezes paradoxais e em conflito, mas também complementares e em convergência.

As intervenções recentes no âmbito das políticas públicas estão, infelizmente, ainda longe destes desígnios.

 Apenas dois exemplos.

No âmbito do ensino superior público, em particular na reestruturação inscrita na “Declaração de Bolonha”, este tem perdido uma oportunidade única de contribuir para a construção de um de narrativas partilhadas. Basta dizer que nas áreas que melhor conheço, as artes e a formação de professores, poucas são as instituições que trabalharam e trabalham em conjunto com os diferentes sectores e organizações sociais, educativas e culturais no sentido de (re)imaginarem e (re) organizarem as suas ofertas de formação.

Também o ensino não superior tem estado prisioneiro de quadros de pensamento e de acção política que, imputando as responsabilidades para o Ministério da Educação e ao Governo, que as tem obviamente, mas esquecendo muitas vezes que não é só o Estado que desenvolve políticas. As escolas e os professores também são construtores de políticas. Pelo que fazem e pelo que não fazem.

O pensamento burocrático, corporativo e hierarquizado não se encontra apenas nos corredores dos Ministérios.

Repensar a educação pública, a escola, as políticas, os actores e as diferentes redes de interacção, imaginar propostas que reconciliem a educação e a escola com a sociedade e que chame a sociedade para uma maior participação neste tipo de actividades afigura-se um elemento fundamental no trabalho a desenvolver de modo a aumentar o compromisso social com a educação como espaço público e a contribuir para evitar a ligeireza com que, predominantemente, se fala da educação, da escola, das políticas e dos seus profissionais.

No fundo procurar outros quadros paradigmáticos assentes na diversidade, diferenciação, autonomia e responsabilização em que o centro não está nos conteúdos, burocraticamente formalizados, muitas vezes desactualizados e descontextualizados, mas na interdependência entre os saberes, as pessoas, as experiências e os contextos, entre as diferentes comunidades de aprendizagem bem como os modelos organizacionais que lhes dão corpo. Que dê outros sentidos para o trabalho da escola, para o trabalho docente, para o trabalho dos estudantes, em que a cultura de rigor, do esforço, da justiça, do diálogo, da inquietação, do ‘inacabamento’, e das parcerias societais pós-burocráticas, se constituam como narrativas partilhadas na construção de um bem comum, de uma sociedade mais culta, informada, participativa e exigente.