... a defesa das ideias


• 18-07-2006 •
Educação
por Albérico Afonso
(Professor Adjunto do Departamento Ciência Multiculturalidade e Desenvolvimento)


 

O alvo são os professores


Há cerca de um ano comentava, neste mesmo espaço, as medidas preconizadas para a educação pelo programa do governo recém-eleito. Numa toada optimista, eventualmente ingénua, reflectia sobre alguns aspectos positivos desse programa.

Nessa altura estava longe de pensar que a educação ou melhor os professores iam estar na berlinda do debate político promovido pela ministra, coadjuvada pela imprensa conservadora.

Regular e metodicamente, a principal responsável pela educação tem lançado na praça pública os temas que segundo o seu ponto de vista permitiriam compreender os principais padecimentos do sistema educativo. São eles: "O absentismo dos professores"; os seus "horários diminutos" por comparação com os outros trabalhadores; "os privilégios e regalias dos professores" e finalmente, para disciplinar todas estas imunidades, uma avaliação a ser feita pelos pais dos alunos.

O diagnóstico é de fácil leitura: os professores são os principais responsáveis pelas patologias do ensino em Portugal.

A forma simples e populista do veredicto evita que se aprofunde a reflexão. A exibição de um culpado em praça pública foi sempre uma fórmula, que historicamente teve um êxito assegurado. Mas o simplismo, a demagogia e a gritaria estiveram sempre nos antípodas do rigor, da seriedade, da reflexão e da exigência que devem merecer as questões da educação.

Se o objectivo do debate fosse o fomento de uma escola pública de qualidade, que tivesse preocupações no combate ao insucesso escolar e ao abandono precoce da escola, que velasse pela proficiência cognitiva dos alunos e de igual modo procedesse a uma avaliação rigorosa do desempenho dos professores, este não seria certamente nem o tom, nem o modo, nem a forma, nem o conteúdo deste pretenso debate público.

Um dos aspectos mais curiosos deste debate tem sido o eco e a leitura feita pelos editorialistas/directores do Expresso e do Público que ao mesmo tempo que deificam as declarações da ministra vão refazendo o seu combate à escola pública como espaço de esbanjamento do Estado Social, dando novos conselhos e apontando o alvo para dois novos objectivos: a gestão democrática das escolas: - "A escola para ser eficaz é um sistema não democrático" e o fim da escola pública através do "cheque educação", que permitiria a "igualdade entre ricos e pobres". Esta nova teoria que preconizam é certamente fruto de um percurso político singular que permitiu, àqueles jornalistas fazer directamente um upgrade do pedigree ideológico do estalinismo para o neo-liberalismo, sem ponta de pudor.

Se os desígnios da actual equipa ministerial fossem implementar uma cultura de exigência na escola pública que não pactuasse com as situações de laxismo (que existem), se fossem promover uma verdadeira e rigorosa avaliação do desempenho dos professores e dos seus processos de trabalho, se se preocupassem com a formação contínua dos docentes de forma a melhorar as suas competências pedagógicas e didácticas em vez da insistência num modelo de formação "pronto a consumir" e de baixa qualidade proteica, estaríamos certamente de acordo.

No entanto por detrás de um discurso pretensamente moralizador há uma espécie de "currículo oculto" que progressivamente se começa a desvendar. Vejamos então cada uma das suas propostas de "moralização" da actividade dos professores.

Comecemos por analisar a forma centralista e uniforme como se tentam combater os "furos dos alunos" pelas "aulas de substituição".

Esta proposta obedece a uma lógica taylorista, proibindo, tal como numa cadeia de montagem, a existência de tempos mortos. Assim sendo, não se aceitam momentos sem controlo geridos de forma autónoma por professores e alunos.

No plano teórico e ideológico pretende-se legitimar uma coerência economicista que deve seguir o modelo da fábrica, onde não se pode perder um minuto. A obsessão pelo cronómetro impõe o controle de todos os tempos e espaços de professores e alunos. Esta é a fórmula de conformação da escola ao mundo real. O ensino deve progressivamente deixar de ser um direito para se transformar numa mercadoria.

Por sua vez o modelo de avaliação que se propõe não pretende melhorar o desempenho dos professores porque se assim fosse as variáveis a tomar em consideração teriam que integrar uma maior exigência em relação à formação, passando pelo aprofundamento da sua diferenciação científica e pedagógica. Veja-se que os graus académicos de mestre, doutor, ou outras pós-graduações não fazem parte dos pré-requisitos para a obtenção do grau de "Professor Titular". Pelo contrário, o que se pretende com esta avaliação é, por um lado, que os professores fiquem reféns da minoria dos pais que participam na actividade da escola e por outro lado, pretende-se igualmente retardar e impedir o acesso aos níveis mais altos da carreira docente.

Há ainda outro desígnio nesta ofensiva do actual ministério, manifestamente apoiado pela imprensa conservadora e pela extrema-direita parlamentar. Trata-se de um nítido ajuste de contas com toda uma geração de professores que foi responsável e suportou o alargamento do ensino àqueles que durante décadas foram condenados a não terem esse direito. É necessário domesticar e espiar as culpas dos que se empenharam civicamente na implementação do ensino público e gratuito para todos, num país que em matéria de alfabetização tinha quase um século de atraso em relação às regiões mais desenvolvido da Europa.

Mas se o 25 de Abril foi o "ensaio geral para construir um futuro melhor", a vivência de uma sociedade democrática não pode prescindir do aperfeiçoamento da escola pública, numa perspectiva político-pedagógica que respeite a diversidade cultural e social das crianças e dos jovens, como um dos contributos fundamentais para ensaiar "novas formas sociais de futuro".