... a defesa das ideias


20-04-2006 •
Educação
por Luciano Pereira
(Vice-Presidente do Conselho Directivo da Escola Superior de Educação de Setúbal)


 

“Bolonhices” e outras estrangeirices – Reflexões bem-humoradas sobre um processo mal amado

 

Primeiro, tivemos que afastar os receios que Bolonha não passasse de uma das estratégias do mais agressivo espírito neo-liberal para a privatização e a “mercantilização” do Ensino Superior.

Depois, tivemos que adormecer os últimos sobressaltos de uma consciência nacional, que teimava em cultivar algumas diferenças salutares, aliás, em total coerência com a nossa história e realidade social. Confessemos que os sucessivos desaires pedagógicos (sobretudo no Português e na Matemática) e a arrastada depressão neo-colonial da nossa auto-estima em muito facilitaram esta difícil e ingrata tarefa! Que nos resta, então, ultrapassar para afirmarmos, com orgulho, a nossa total “bolonhice”?

A abençoada tutela reduziu drasticamente o número de cursos para travar as manifestações individuais de rua dos que já exigiam um curso só para si. Fingiu remeter para a “sociedade civil” as decisões em matéria de duração e estruturação dos cursos, mas cedo se arrependeu quando percebeu o quanto a “sociedade civil” sofria com tamanhos dilemas.

Nós, com indisfarçável má vontade, sob pressão (que é assim que gostamos de trabalhar) lá fomos tentando construir consensos em torno dos números de anos para concluir, de forma mais ou menos digna, antigas e novas profissões com contornos mal definidos que muitos de nós mal conhecem. Sentimo-nos obrigados a fazê-lo e fizemo-lo, muitas vezes, mesmo antecipando-nos à imprescindível reflexão sobre as competências e sobre o tempo necessário para as adquirir. Na área dos professores e dos educadores de infância, fomos espertos! Primeiro fingimos colaborar aceitando uma redução para os três anos. Quando percebemos que a maior parte da rapaziada até propunha tornar os cursos mais longos, e que a tutela vacilava, imaginámos acrescentar mais um aninho, fintámo-los, e conseguimos defender a nossa velha estrutura de quatro anos, agora promovida a três mais um ou, melhor, a 180 “euro créditos” de formação com um apêndice mais ou menos profissionalizante, aceitámos a estrutura modular sem perder a filosofia da formação integrada (Yes!).

Uma coisa todos percebemos: o segundo ciclo não será financiado pelo pecúlio público, portanto nada de veleidades! Reduzir para três anos é entrar no jogo e regredirmos na democratização do Ensino Superior que, em Portugal, nunca chegou a ser efectiva! Logo agarremo-nos aos “quatro” de unhas e dentes e nada de pestanejar quando nos falarem das novas formas de aprendizagem, no ensino à distância, no trabalho autónomo e na avaliação americana. Dêem-me uma boa razão para aceitarmos os três quando são quatro os que com tanto sacrifício conquistámos. Há quem chegue a dizer que é uma das sagradas conquistas do Abril crepuscular! Confesso que, neste momento, até eu, já estou prestes a dar a minha vida pelos quatro, mas nunca pelos três!

Raramente definimos novas áreas de formação (necessidades educativas específicas; educação para os media e para as tecnologias da informação; cidadania europeia; educação para a igualdade dos géneros…) Não é que estejamos mais inclinados para a defesa das velhas e tradicionais áreas do saber, mas temos todas as razões para nos contentarmos com as inovações que introduzimos no ensino durante estes últimos vinte anos. Essas sim, não podem deixar de ser imprescindíveis, porque são diferentes, giras e profundamente inovadoras, aliás, é só dar uma vista de olhos sobre os novos sistemas dos países nórdicos para nos certificarmos das nossas bem fundadas opções!

Os alunos do Politécnico de Setúbal, com uma participação muito reduzida neste verdadeiro processo revolucionário, estão esperançosos, embora pouco esclarecidos. Cativa-os a internacionalização do ensino, a possibilidade de mobilidade na grande Europa. Esperam, todavia, de forma bastante disciplinada, melhores tempos para aproveitar os programas ao seu dispor (ERASMUS…). O domínio das línguas condiciona-os e confessam não se sentirem muito atraídos por elas, mas estão confiantes na pujança da língua portuguesa!

A reorganização completa dos currículos deveria estar a fazer parte das suas e das nossas preocupações. Reestruturar o primeiro ciclo de estudos significa a coragem e a ousadia de programas novos que não sejam meras operações cosméticas dos velhos. A nova filosofia exige uma construção curricular que vise uma sustentada progressão e constante reorientação do estudante.

Definir as competências necessárias para obter um diploma, organizá-las de forma a permitir que sejam adquiridas gradualmente e que possam ser avaliadas, independentemente da forma como foram adquiridas, permitindo ao estudante aprendizagens verdadeiramente autónomas são exigências do nosso mundo contemporâneo.

A nova pedagogia deve virar-se para as novas formas de apropriação dos saberes e fazeres. Todos sabem que, apesar dos maus professores do passado, os alunos lá foram aprendendo. Imagine-se os mesmos alunos sem ter que perder tempo nas estratégias que desenvolviam para enganar e contentar os tais maus professores.

Ensinar, hoje, é respeitar os ritmos e as formas de aprendizagem dos estudantes e quanto menos o professor estorvar melhor. Melhor porque, primeiro, fica mais económico e, segundo, porque faz um trabalho muito mais asseado, asséptico, por assim dizer!

Estamos, sem nos darmos conta, a viver a mudança mais radical desde a criação da Universidade e do Ensino Superior. Lá vamos todos, alegremente, inventando um sistema que seja compatível com as tendências das nossas necessidades, das nossas práticas e das exigências do capital internacional. (Por vezes ponho-me a pensar e a sonhar com o que teria acontecido se aquele muro não tivesse caído na cabeça daqueles alemães que se preparavam para passar férias no Algarve).

Agora, a sério, um dos perigos que corremos é o de contribuir para a progressiva privatização da instrução mais elevada da nossa nação e imprimir-lhe uma lógica de ranking e de competição, formando elites de sangue e de e-cus. Adeus à democracia, ao 25 de Abril e até à República! (Não se pense que o debate esteja a ser fácil! O professor do ensino superior foi treinado para resistir, para combater, para defender causas, para afirmar a sua diferença ideológica, o seu perfil, único e irrepetível.)

Enquanto bom português que reformula um governo em 2 horas e uma equipa de futebol em 2 minutos, queria deixar algumas sugestões pessoais para a Bolonha do Capital (questão de afirmar um certo fair play para com o adversário): aproveitar o primeiro ano de formação para moldar “ideologicamente” (o estudante moldado está mais apto para entrar no mundo dos contratos); os anos seguintes devem seguir o seu rumo de contrato em contrato. (Cumpriu, pode novamente “contratualizar”. Não cumpriu, não há nova “contratualização” para ninguém.) Uniformizar os instrumentos de avaliação, vai permitir-nos dar um valor às escolas, aos cursos e até aos professores sem que se possam chatear. E se quisermos invadir a Europa com os nossos graduados, tal como o fazemos com os nossos pedreiros, basta criar uma fundação para custear as viagens, os cursos de língua, as empregadas domésticas e os telefonemas para os papás.

Quanto ao valor do “euro crédito”, inovemos, cada qual dará o valor que entender: assim, para um bom aluno, corresponderia a 22 horas de funcionamento, 24 para um estudante médio, 27 para um estudante fraco. Façamos corresponder um crédito por cada semana de trabalho efectivo e deixemos a rapaziada aprender nos cinemas, nos teatros, nas praias e nas vindimas.

O professor passará a ser avaliado pela relação entre o tempo da sua fala e o tempo de trabalho do aluno. Os melhores são, obviamente, os que conseguem pôr os alunos a trabalhar durante semanas apenas com uma piscadela de olhos!

A medida do tempo de apropriação dos saberes pode constituir uma verdadeira revolução social, no bom sentido liberal, visando uma sociedade mais justa. Já diz a velha fábula: “Quem não trabuca não manduca”. Com este modelo, os estudantes, segundo as suas opções e necessidades, poderão ter mais tempo para trabalhar e ganhar umas coroas para pagar os seus estudos, deixa de haver razão para borlas, que de borla já nem um cego canta! Esta nova gestão do tempo também vai permitir corresponder melhor às necessidades das famílias, começando por formá-las que bem precisamos de sangue novo para aguentar o sistema da segurança social enquanto subsistir tal aberração!

Cada escola deverá apresentar três blocos horários, o da manhã, o da tarde e o da noite, para oferecerem um serviço contínuo, non-stop, para satisfazer todos os gostos e hábitos, desde aos mais noctívagos aos mais madrugadores.
Apostemos no 2º ciclo bilingue e efectivamente de nível internacional para atrair estudantes estrangeiros com poder de “negociação” e já que, durante o “primeiro ciclo”, sempre privilegiámos o “aprender à aprender” e o desenvolvimento do sentido crítico (até estou desconfiado que os bolonheses mandaram para cá espiões), aproveitemos para levá-los a pesquisar novas formas de aprendizagem mais económicas e formas criativas de auto-controlo e controlo do sentido crítico (sempre evitará alguns disparates, tais como os que acabam de ler!)