Primeiro, tivemos que afastar
os receios que Bolonha não passasse de uma das estratégias do mais
agressivo espírito neo-liberal para a privatização e a “mercantilização”
do Ensino Superior.
Depois, tivemos que adormecer os últimos sobressaltos de uma
consciência nacional, que teimava em cultivar algumas diferenças
salutares, aliás, em total coerência com a nossa história e realidade
social. Confessemos que os sucessivos desaires pedagógicos (sobretudo no
Português e na Matemática) e a arrastada depressão neo-colonial da nossa
auto-estima em muito facilitaram esta difícil e ingrata tarefa! Que nos
resta, então, ultrapassar para afirmarmos, com orgulho, a nossa total “bolonhice”?
A abençoada tutela reduziu drasticamente o número de cursos para travar
as manifestações individuais de rua dos que já exigiam um curso só para
si. Fingiu remeter para a “sociedade civil” as decisões em matéria de
duração e estruturação dos cursos, mas cedo se arrependeu quando
percebeu o quanto a “sociedade civil” sofria com tamanhos dilemas.
Nós, com indisfarçável má vontade, sob pressão (que é assim que
gostamos de trabalhar) lá fomos tentando construir consensos em torno
dos números de anos para concluir, de forma mais ou menos digna, antigas
e novas profissões com contornos mal definidos que muitos de nós mal
conhecem. Sentimo-nos obrigados a fazê-lo e fizemo-lo, muitas vezes,
mesmo antecipando-nos à imprescindível reflexão sobre as competências e
sobre o tempo necessário para as adquirir. Na área dos professores e dos
educadores de infância, fomos espertos! Primeiro fingimos colaborar
aceitando uma redução para os três anos. Quando percebemos que a maior
parte da rapaziada até propunha tornar os cursos mais longos, e que a
tutela vacilava, imaginámos acrescentar mais um aninho, fintámo-los, e
conseguimos defender a nossa velha estrutura de quatro anos, agora
promovida a três mais um ou, melhor, a 180 “euro créditos” de
formação com um apêndice mais ou menos profissionalizante, aceitámos a
estrutura modular sem perder a filosofia da formação integrada (Yes!).
Uma coisa todos percebemos: o segundo ciclo não será financiado pelo
pecúlio público, portanto nada de veleidades! Reduzir para três anos é
entrar no jogo e regredirmos na democratização do Ensino Superior que,
em Portugal, nunca chegou a ser efectiva! Logo agarremo-nos aos “quatro”
de unhas e dentes e nada de pestanejar quando nos falarem das novas
formas de aprendizagem, no ensino à distância, no trabalho autónomo e na
avaliação americana. Dêem-me uma boa razão para aceitarmos os três
quando são quatro os que com tanto sacrifício conquistámos. Há quem
chegue a dizer que é uma das sagradas conquistas do Abril crepuscular!
Confesso que, neste momento, até eu, já estou prestes a dar a minha vida
pelos quatro, mas nunca pelos três!
Raramente definimos novas áreas de formação (necessidades educativas
específicas; educação para os media e para as tecnologias da informação;
cidadania europeia; educação para a igualdade dos géneros…) Não é que
estejamos mais inclinados para a defesa das velhas e tradicionais áreas
do saber, mas temos todas as razões para nos contentarmos com as
inovações que introduzimos no ensino durante estes últimos vinte anos.
Essas sim, não podem deixar de ser imprescindíveis, porque são
diferentes, giras e profundamente inovadoras, aliás, é só dar uma vista
de olhos sobre os novos sistemas dos países nórdicos para nos
certificarmos das nossas bem fundadas opções!
Os alunos do Politécnico de Setúbal, com uma participação muito
reduzida neste verdadeiro processo revolucionário, estão esperançosos,
embora pouco esclarecidos. Cativa-os a internacionalização do ensino, a
possibilidade de mobilidade na grande Europa. Esperam, todavia, de forma
bastante disciplinada, melhores tempos para aproveitar os programas ao
seu dispor (ERASMUS…). O domínio das línguas condiciona-os e confessam
não se sentirem muito atraídos por elas, mas estão confiantes na pujança
da língua portuguesa!
A reorganização completa dos currículos deveria estar a fazer parte das
suas e das nossas preocupações. Reestruturar o primeiro ciclo de estudos
significa a coragem e a ousadia de programas novos que não sejam meras
operações cosméticas dos velhos. A nova filosofia exige uma construção
curricular que vise uma sustentada progressão e constante reorientação
do estudante.
Definir as competências necessárias para obter um diploma, organizá-las
de forma a permitir que sejam adquiridas gradualmente e que possam ser
avaliadas, independentemente da forma como foram adquiridas, permitindo
ao estudante aprendizagens verdadeiramente autónomas são exigências do
nosso mundo contemporâneo.
A nova pedagogia deve virar-se para as novas formas de apropriação dos
saberes e fazeres. Todos sabem que, apesar dos maus professores do
passado, os alunos lá foram aprendendo. Imagine-se os mesmos alunos sem
ter que perder tempo nas estratégias que desenvolviam para enganar e
contentar os tais maus professores.
Ensinar, hoje, é respeitar os ritmos e as formas de aprendizagem dos
estudantes e quanto menos o professor estorvar melhor. Melhor porque,
primeiro, fica mais económico e, segundo, porque faz um trabalho muito
mais asseado, asséptico, por assim dizer!
Estamos, sem nos darmos conta, a viver a mudança mais radical desde a
criação da Universidade e do Ensino Superior. Lá vamos todos,
alegremente, inventando um sistema que seja compatível com as tendências
das nossas necessidades, das nossas práticas e das exigências do capital
internacional. (Por vezes ponho-me a pensar e a sonhar com o que teria
acontecido se aquele muro não tivesse caído na cabeça daqueles alemães
que se preparavam para passar férias no Algarve).
Agora, a sério, um dos perigos que corremos é o de contribuir para a
progressiva privatização da instrução mais elevada da nossa nação e
imprimir-lhe uma lógica de ranking e de competição, formando
elites de sangue e de e-cus. Adeus à democracia, ao 25 de Abril e
até à República! (Não se pense que o debate esteja a ser fácil! O
professor do ensino superior foi treinado para resistir, para combater,
para defender causas, para afirmar a sua diferença ideológica, o seu
perfil, único e irrepetível.)
Enquanto bom português que reformula um governo em 2 horas e uma equipa
de futebol em 2 minutos, queria deixar algumas sugestões pessoais para a
Bolonha do Capital (questão de afirmar um certo fair play para
com o adversário): aproveitar o primeiro ano de formação para moldar
“ideologicamente” (o estudante moldado está mais apto para entrar no
mundo dos contratos); os anos seguintes devem seguir o seu rumo de
contrato em contrato. (Cumpriu, pode novamente “contratualizar”. Não
cumpriu, não há nova “contratualização” para ninguém.) Uniformizar os
instrumentos de avaliação, vai permitir-nos dar um valor às escolas, aos
cursos e até aos professores sem que se possam chatear. E se quisermos
invadir a Europa com os nossos graduados, tal como o fazemos com os
nossos pedreiros, basta criar uma fundação para custear as viagens, os
cursos de língua, as empregadas domésticas e os telefonemas para os
papás.
Quanto ao valor do “euro crédito”, inovemos, cada qual dará o
valor que entender: assim, para um bom aluno, corresponderia a 22 horas
de funcionamento, 24 para um estudante médio, 27 para um estudante
fraco. Façamos corresponder um crédito por cada semana de trabalho
efectivo e deixemos a rapaziada aprender nos cinemas, nos teatros, nas
praias e nas vindimas.
O professor passará a ser avaliado pela relação entre o tempo da sua
fala e o tempo de trabalho do aluno. Os melhores são, obviamente, os que
conseguem pôr os alunos a trabalhar durante semanas apenas com uma
piscadela de olhos!
A medida do tempo de apropriação dos saberes pode constituir uma
verdadeira revolução social, no bom sentido liberal, visando uma
sociedade mais justa. Já diz a velha fábula: “Quem não trabuca não
manduca”. Com este modelo, os estudantes, segundo as suas opções e
necessidades, poderão ter mais tempo para trabalhar e ganhar umas coroas
para pagar os seus estudos, deixa de haver razão para borlas, que de
borla já nem um cego canta! Esta nova gestão do tempo também vai
permitir corresponder melhor às necessidades das famílias, começando por
formá-las que bem precisamos de sangue novo para aguentar o sistema da
segurança social enquanto subsistir tal aberração!
Cada escola deverá apresentar três blocos horários, o da manhã, o da
tarde e o da noite, para oferecerem um serviço contínuo, non-stop,
para satisfazer todos os gostos e hábitos, desde aos mais noctívagos aos
mais madrugadores.
Apostemos no 2º ciclo bilingue e efectivamente de nível internacional
para atrair estudantes estrangeiros com poder de “negociação” e já que,
durante o “primeiro ciclo”, sempre privilegiámos o “aprender à aprender”
e o desenvolvimento do sentido crítico (até estou desconfiado que os
bolonheses mandaram para cá espiões), aproveitemos para levá-los a
pesquisar novas formas de aprendizagem mais económicas e formas
criativas de auto-controlo e controlo do sentido crítico (sempre evitará alguns disparates, tais como os que acabam de ler!)
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