... a defesa das ideias


• 08-08-2007 •


por Fernanda Botelho
(Professora Coordenadora do Departamento de Línguas da ESE de Setúbal)


 

Educar para a televisão, aprender português
 

Num mundo crescentemente globalizado, em que as diferenças linguísticas e culturais são cada vez mais consideradas, assim como as rápidas mudanças tecnológicas, a natureza (e os conteúdos) da literacia têm de mudar e alargar-se, de molde a integrar outras formas de construção de significações, outros sistemas semióticos. Os textos, hoje, são multimodais e requerem literacias múltiplas, compósitas, obrigando a reequacionar o conceito de literacia.

Deste modo, e na sequência do que venho defendendo sobre o alargamento do conceito de literacia a uma multiplicidade de textos e discursos, argumentarei nesta crónica a necessidade da educação para a televisão, salientando as aprendizagens que se podem realizar com ela e a partir dela, ressaltando a importância da leitura das suas histórias para o desenvolvimento de competências comunicativas, democráticas e de cidadania dos alunos, chamando a atenção para a “didacticidade” de muitos dos seus programas e para as oportunidades educativas que se podem gerar na aula de Português, reiterando a abertura dialógica e relacional que a sua utilização favorece, implicando também a aceitação de referentes culturais e vivenciais dos alunos.

Alguém, um dia, disse que a televisão pode ensinar, iluminar e até inspirar. Todavia, só o pode fazer se a usarmos com estas finalidades. É pois exactamente por esta razão que é preciso reflectir sobre o seu papel como parte integrante da nossa cultura, como um poderoso meio de aprendizagem das crianças e dos jovens, que se desenvolvem e crescem num mundo multimédia, em expansão, e orientado para a informação e para o conhecimento. 

Sempre existiram preocupações sobre o impacte da televisão, sobretudo nas vidas das crianças. Durante muito tempo, considerou-se que a exposição à televisão era passiva e, consequentemente, era a televisão que agia sobre as crianças. Hoje em dia, há uma crescente consciência de que a televisão tem vantagens educativas, acrescidas das fortes motivações que as crianças e os jovens têm relativamente à sua utilização.

Numa caracterização exemplar deste medium, Len Masterman (1980) afirmou o seguinte: “A televisão não é uma janela sobre o mundo, nem um espelho da sociedade”. Os seus textos estão longe de ser transparentes; aliás, se o fossem, seria desnecessária a educação para a televisão. Todavia, as audiências, neste caso, as crianças e os jovens, obtêm muito prazer nos seus visionamentos. Além disto, há programas de televisão que são didácticos no sentido em que têm como finalidade desenvolver competências nos espectadores, tanto ao nível do saber, como do ponto de vista relacional.

Como sabemos, o prazer e o gosto são fundamentais para o sucesso na aprendizagem. Deste modo, sempre que o tema Televisão é introduzido na sala de aula, em qualquer nível de ensino, o clima emocional altera-se; os alunos empolgam-se, falam sobre e partilham o que vêem na televisão, participam. Gera-se um clima de segurança e confiança, emergindo, naturalmente, as suas interpretações da realidade, favorecendo-se a partilha de várias representações do real. Mesmo os alunos menos capazes sentem-se seguros para apresentar as suas interpretações e negociar significações.

Assim, a relação pedagógica pode alterar-se, permitindo configurar novas formas de viver colectivamente, mais intervenientes e participadas. Proporcionam-se actividades pedagógicas em torno da problematização e do questionamento, centradas nos alunos, no diálogo estabelecido entre eles e com o professor, em autênticos processos grupais de aprendizagem em colaboração, podendo contribuir para o fortalecimento de sentimentos de aceitação e de pertença.

Acresce referir, ainda, que é contactando com e analisando situações comunicativas muito diversas, directas ou diferidas, que as crianças e os jovens ultrapassam os limites da sua própria linguagem, tendo oportunidade de a enriquecer e até de a expandir pela interacção com os outros. Além disto, proporciona-se abertura à diversidade, no encontro entre culturas, facilitando-se a aceitação do outro, aspectos estes essenciais à construção da tolerância e da solidariedade.

Ora, pela televisão, as crianças e os jovens contactam com textos muito variados, com uma diversidade de línguas, de discursos e de registos de língua a que, habitualmente e de outra forma, não têm acesso. Defrontam-se com múltiplas tipologias textuais que encerram “histórias”, com graus igualmente muito variáveis de representação da realidade (da simulação à ficção…). Um trabalho pedagógico em torno destas histórias, na aula de Português, potencia certamente a sua compreensão, viabilizando actividades favorecedoras de competências de comunicação, de intercompreensão e de aceitação do outro.

Como sabemos, a narrativa constitui um processo fundamental de atribuição de sentido à vida e à experiência da realidade, o que fazemos, quotidianamente, através da linguagem verbal. A televisão é predominantemente narrativa; conta histórias, incessantemente, configurando os acontecimentos, sejam reais, simulados ou ficcionados. Tem desenvolvido e produzido formas narrativas distintas e variadas (documentários, telejornais, reportagens, concursos, debates, séries, animação, novelas …) onde ocorre uma diversidade de situações de discurso e de linguagens. Tem ainda uma linguagem única com códigos, convenções e modos de transição peculiares, que lhe permitem construir as suas formas narrativas.

Por outro lado, a leitura não constitui um encontro descontextualizado entre texto e leitor, mas antes um processo activo e crítico em que as significações e os gostos circulam, socialmente, através da interacção que se estabelece. Ao fazê-lo, ampliam-se sentidos previamente construídos, reinterpretam-se textos.

Deste modo e como em qualquer processo de leitura (incluindo a dos textos mediáticos, nomeadamente os da televisão), as audiências são activas e participam no processo comunicativo, construindo a significação das mensagens multimodais a que acedem pela televisão. Por isso, nem sempre as significações construídas correspondem às propostas, o que, per se, justifica que se eduque para a Televisão. Esta educação deverá assentar no desenvolvimento das capacidades activas das audiências, orientando-se para o desenvolvimento das suas capacidades de selecção, de avaliação e de julgamento crítico.

Além disso, a escola tem de estar ligada às vivências dos seus actores, neste caso os alunos, comprometendo-se, mais directamente, com a sua cultura mediática e tecnológica, valorizando-a e proporcionando-lhes ambientes melhores. Há que ajudá-los a cooperar, especialmente com a televisão, pois é um medium dominante e envolve uma proliferação de escolhas.


Fernanda Botelho - 08-08-2007 10:17