... a defesa das ideias


• 10-10-2007 •

por Ana Maria Roque Boavida
(Professora do Departamento de Matemática da ESE de Setúbal)


 

Matematicando, matemaginando... 

 

Há dias, ao folhear uma revista, deparei com uma entrevista a José Carlos Príncipe, um cientista português que recebeu recentemente um prémio atribuído pelo Instituto de Engenheiros Eléctricos e Electrónicos dos Estados Unidos, pela investigação que tem desenvolvido na área da Engenharia Biomédica.

Dizia este cientista ter gostado sempre de “perceber como é que as coisas funcionam” e acrescentava que tanto na ciência, como na arte, “o processo criativo é muito idêntico”: em qualquer dos casos, começa-se “com uma hipótese ou interpretação pessoal, acompanhada de uma construção meticulosa”.

Dei comigo a pensar que estas palavras, sem qualquer alteração, se poderiam aplicar à Matemática, área do saber (a) odiada por muitos, porque incompreensível e sem sentido, (b) para outros, feita de regras a que há que “obedecer” sem que haja lugar para a criatividade e a imaginação e (c) fascinante, intrigante e desafiadora para alguns.

Sempre me questionei sobre o porquê da Matemática despertar sentimentos tão contraditórios, sobre porque é que, tantas vezes, é socialmente aceitável que a Matemática seja “um problema” ao ponto de se ouvir, não raramente, afirmar em público com alguma displicência e, aparentemente até, um certo orgulho, “nunca percebi nada de Matemática”...

Não nos deparamos com este tipo de afirmações em relação, por exemplo, à Língua Portuguesa, História ou Geografia e, se fossem feitas, muito provavelmente não despertariam, em quem as ouve, a reacção de compreensão e empatia que surge, frequentemente, quando se trata de Matemática...

A minha experiência de mais de 30 anos de professora, leva-me a acreditar que a Matemática não é um saber que apenas pode ser aprendido por alguns seres especiais que nascem, com o que, no século XIX, se considerava uma significativa “bossa da Matemática”.

É possível, nas escolas, criar condições para que todos os alunos, e não apenas alguns, adquiram uma cultura matemática de base que lhes permita interpretar e compreender criticamente a Matemática envolvida em inúmeras situações do dia a dia, que lhes permita resolver problemas e tomar decisões razoáveis e informadas acerca de múltiplos aspectos que afectam as suas vidas e em que a Matemática está presente.

As referidas condições, passam não apenas, nem sobretudo, por proporcionar a aprendizagem de técnicas matemáticas: saber como se faz uma subtracção, multiplicação, ou divisão, como se resolve uma equação, como se aplicam as fórmulas de cálculo de áreas ou volumes, etc. Como bem diz Paulo Almeida, pensar que se aprende Matemática só com a técnica, isto é, uma certa habilidade no fazer, é o mesmo que pensar que “se escreve com a caneta e a mão” ou que se vê “com os olhos e os óculos”.

Aprender Matemática é, sobretudo, aprender uma certa forma de pensar. Envolve não apenas a técnica, mas também a capacidade de imaginar e de criar. Inclui adquirir uma predilecção por resolver problemas, por analisar e compreender, por desenvolver a perspectiva de que a Matemática é uma actividade de construção de sentido e o hábito de a utilizar deste modo.

Imaginar é, essencialmente, abstrair. É um percurso sinuoso, não imune a erros, que, por vezes, conduz a acertos e correcções. Exige, de quem o faz, não ver tudo o que se vê e ver algo que não se vê.

O leitor já imaginou, por exemplo, porque é que um jogo de dominó usual não tem 19 peças ou qualquer outro número peças que não seja 28? Ou porque é que, para quem gosta muito de pipocas, é preferível comprar um pacote de pipocas feitoFolga com uma folha A4 enrolada de modo a formar um cilindro baixo e “gordo” do que um cilindro alto e fino feito, também, com uma folha A4? (estou a supor que bases dos pacotes são coladas depois dos cilindros feitos e usando outro material). Ou, ainda, porque é que se pusermos uma corda bem justinha à volta do equador da Terra, do “equador” de uma bola de futebol ou de um berlinde esférico, acrescentarmos, em seguida, um metro à corda e depois a esticarmos uniformemente à volta dos “equadores”, a folga que passa a haver entre a corda e a Terra, bola ou berlinde, é sempre a mesma (ver figura 1)? E já agora, consegue imaginar que animal/animais conseguem passar entre a corda e o “chão”.

Reduzir a Matemática à técnica, confundir a capacidade matemática com o domínio de um conjunto de algoritmos e procedimentos matemáticos, pode conduzir a que o que se passa na aula de Matemática seja, para muitos alunos, um jogo de fórmulas e de símbolos sem sentido e sem relação entre si. Neste contexto, quem aprende não está em posição de criticar, mas apenas de aceitar o que lhe é apresentado. Esta situação, para lá de poder induzir, nalguns casos, níveis profundos de ansiedade pouco favoráveis à aprendizagem, dificilmente poderá contribuir para desenvolver o raciocínio crítico, conjectural, problematizador e argumentativo, tão fundamental na sociedade dos nossos dias. Poder-se-ão, até, memorizar técnicas, mas dificilmente se aprenderá a ter dúvidas e a fazer um uso crítico e criativo dessas técnicas; dificilmente se aprenderá a imaginar e, por tudo isto, a Matemática dificilmente contribuirá para a aprendizagem da cidadania.

Numa época em que é particularmente importante que a Escola proporcione a todos os alunos condições para que possam adquirir uma cultura matemática possibilitadora do seu crescimento em autonomia, democratizar o ensino da Matemática passa, também, por romper com concepções elitistas que contribuam para reforçar a ideia de que a Matemática é um mundo muito particular que apenas poucos podem compreender.

 

Referência

Almeida, P. (1994). Imaginar para aprender, o caso da Matemática. Noesis. (29-32).


Ana Maria Roque Boavida - 10-10-2007 09:50