Há dias, ao folhear uma revista,
deparei com uma entrevista a José Carlos Príncipe, um cientista português
que recebeu recentemente um prémio atribuído pelo Instituto de Engenheiros
Eléctricos e Electrónicos dos Estados Unidos, pela investigação que tem
desenvolvido na área da Engenharia Biomédica.
Dizia este cientista ter gostado sempre de “perceber como é que
as coisas funcionam” e acrescentava que tanto na ciência, como na
arte, “o processo criativo é muito idêntico”: em qualquer
dos casos, começa-se “com uma hipótese ou interpretação pessoal,
acompanhada de uma construção meticulosa”.
Dei comigo a pensar que estas palavras, sem qualquer alteração, se
poderiam aplicar à Matemática, área do saber (a) odiada por muitos, porque
incompreensível e sem sentido, (b) para outros, feita de regras a que há que
“obedecer” sem que haja lugar para a criatividade e a imaginação e (c)
fascinante, intrigante e desafiadora para alguns.
Sempre me questionei sobre o porquê da Matemática despertar sentimentos
tão contraditórios, sobre porque é que, tantas vezes, é socialmente
aceitável que a Matemática seja “um problema” ao ponto de se ouvir, não
raramente, afirmar em público com alguma displicência e, aparentemente até,
um certo orgulho, “nunca percebi nada de Matemática”...
Não nos deparamos com este tipo de afirmações em relação, por exemplo, à
Língua Portuguesa, História ou Geografia e, se fossem feitas, muito
provavelmente não despertariam, em quem as ouve, a reacção de compreensão e
empatia que surge, frequentemente, quando se trata de Matemática...
A minha experiência de mais de 30 anos de professora, leva-me a acreditar
que a Matemática não é um saber que apenas pode ser aprendido por alguns
seres especiais que nascem, com o que, no século XIX, se considerava uma
significativa “bossa da Matemática”.
É possível, nas escolas, criar condições para que todos os alunos, e não
apenas alguns, adquiram uma cultura matemática de base que lhes permita
interpretar e compreender criticamente a Matemática envolvida em inúmeras
situações do dia a dia, que lhes permita resolver problemas e tomar decisões
razoáveis e informadas acerca de múltiplos aspectos que afectam as suas
vidas e em que a Matemática está presente.
As referidas condições, passam não apenas, nem sobretudo, por
proporcionar a aprendizagem de técnicas matemáticas: saber como se faz uma
subtracção, multiplicação, ou divisão, como se resolve uma equação, como se
aplicam as fórmulas de cálculo de áreas ou volumes, etc. Como bem diz Paulo
Almeida, pensar que se aprende Matemática só com a técnica, isto é, uma
certa habilidade no fazer, é o mesmo que pensar que “se escreve com
a caneta e a mão” ou que se vê “com os olhos e os óculos”.
Aprender Matemática é, sobretudo, aprender uma certa forma de pensar.
Envolve não apenas a técnica, mas também a capacidade de imaginar e de
criar. Inclui adquirir uma predilecção por resolver problemas, por analisar
e compreender, por desenvolver a perspectiva de que a Matemática é uma
actividade de construção de sentido e o hábito de a utilizar deste modo.
Imaginar é, essencialmente, abstrair. É um percurso sinuoso, não imune a
erros, que, por vezes, conduz a acertos e correcções. Exige, de quem o faz,
não ver tudo o que se vê e ver algo que não se vê.
O leitor já imaginou, por exemplo, porque é que um jogo de dominó usual
não tem 19 peças ou qualquer outro número peças que não seja 28? Ou porque é
que, para quem gosta muito de pipocas, é preferível comprar um pacote de
pipocas feito
com uma folha A4 enrolada de modo a formar um cilindro baixo e “gordo” do
que um cilindro alto e fino feito, também, com uma folha A4? (estou a supor
que bases dos pacotes são coladas depois dos cilindros feitos e usando outro
material). Ou, ainda, porque é que se pusermos uma corda bem justinha à
volta do equador da Terra, do “equador” de uma bola de futebol ou de um
berlinde esférico, acrescentarmos, em seguida, um metro à corda e depois a
esticarmos uniformemente à volta dos “equadores”, a folga que passa a haver
entre a corda e a Terra, bola ou berlinde, é sempre a mesma (ver figura 1)?
E já agora, consegue imaginar que animal/animais conseguem passar entre a
corda e o “chão”.
Reduzir a Matemática à técnica, confundir a capacidade matemática com o
domínio de um conjunto de algoritmos e procedimentos matemáticos, pode
conduzir a que o que se passa na aula de Matemática seja, para muitos
alunos, um jogo de fórmulas e de símbolos sem sentido e sem relação entre
si. Neste contexto, quem aprende não está em posição de criticar, mas apenas
de aceitar o que lhe é apresentado. Esta situação, para lá de poder induzir,
nalguns casos, níveis profundos de ansiedade pouco favoráveis à
aprendizagem, dificilmente poderá contribuir para desenvolver o raciocínio
crítico, conjectural, problematizador e argumentativo, tão fundamental na
sociedade dos nossos dias. Poder-se-ão, até, memorizar técnicas, mas
dificilmente se aprenderá a ter dúvidas e a fazer um uso crítico e criativo
dessas técnicas; dificilmente se aprenderá a imaginar e, por tudo isto, a
Matemática dificilmente contribuirá para a aprendizagem da cidadania.
Numa época em que é particularmente importante que a Escola proporcione a
todos os alunos condições para que possam adquirir uma cultura matemática
possibilitadora do seu crescimento em autonomia, democratizar o ensino da
Matemática passa, também, por romper com concepções elitistas que contribuam
para reforçar a ideia de que a Matemática é um mundo muito particular que
apenas poucos podem compreender.
Referência
Almeida, P. (1994). Imaginar para aprender, o caso da Matemática.
Noesis. (29-32).
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