... a defesa das ideias


• 14-06-2007 •


por António Ângelo Vasconcelos
(Professor Adjunto do Departamento de Música)


 

Ensino Superior, Estado, Sociedade e Mercado
 

(algumas ideias sobre as políticas e os modos de governação - em contracorrente)

As profundas transformações das sociedades contemporâneas interpelam a educação e formação a nível do ensino superior sob vários pontos de vista – político, organizacional, científico e cultural. Interpelação que envolve contextos, actores e acções diversificadas, oriundas das organizações académicas, do Estado, da sociedade e do mercado, no plano nacional e internacional. Interpelação que, por sua vez, se situa no fechar de um ciclo sociohistórico em que se desenvolveram e construíram determinadas políticas, determinadas ideias de ensino superior, modos de organização, de governo e de financiamento, de modelos curriculares, de estatutos de docentes, de pensar a pedagogia, de pensar as relações entre a formação e o mercado.

Assim, afigura-se necessária, no contexto da crise do Estado Providência, e na emergência de outros modos de administração e coordenação, uma reflexão profunda sobre a dimensão política e pública do ensino superior. Reflexão que implica a reafirmação dos seus valores fundadores centrados mais nas finalidades do que nos meios e que de algum modo encontrem alternativas à difusão transnacional de cânones de índole neoliberal em que a privatização dos serviços públicos e a importação, muitas vezes acrítica, de modelos empresariais se constituem quase como únicas alternativas à construção e ao desenvolvimento da educação e formação superiores como um bem comum.

Neste contexto, emerge a necessidade de repolitizar este tipo de educação e formação. E esta repolitização da educação e formação no âmbito do ensino superior público passa, entre outras, por alguns questionamentos fundamentais de que destaco: a actual separação entre o ensino superior e o politécnico, a relação entre a formação e o mercado de trabalho; a governança e os modos de governo, o papel do Estado.

No primeiro caso, a actual separação entre o ensino universitário e o ensino politécnico, foi criada nos anos 70 do século XX, com a designação de “ensino superior de curta duração”, e de algum modo “imposta” a Portugal por instâncias internacionais como o Banco Mundial. Esta separação distinguia de algum modo as diferentes profissões. Para umas era preciso uma formação de “excelência” e investigativa, para outras bastava uma qualificação mais especializada e mais de acordo com o mercado de trabalho. Ou pelo daquilo que se considerava ser o mercado de trabalho. Não deixa de ser curioso que no âmbito destas profissões, mais ou menos de segunda, não fossem apoiadas as formações ligadas às artes e fosse incluída a formação dos professores do ensino básico.

Por outro lado, com a globalização nos diferentes campos de intervenção a questão de escala não é de somenos importância, sob o ponto de vista da formação, da investigação e da produção de conhecimento. Também com a reorganização curricular no âmbito da “Declaração de Bolonha” esta separação entre ensino superior universitário e politécnico afigura-se pouco pertinente. Veja-se, por exemplo, o caso da investigação. Ela não é apanágio de um ou de outro subsistema. Pelo contrário, a investigação e a produção de conhecimento nas diferentes esferas da actuação humana é um elemento primordial na sociedade contemporânea portuguesa de modo a criar quadros de inteligibilidade e de intervenção política, social, cultural, tecnológica, artística, entre outros.

Por isso, a interrogação que se coloca é, num contexto de transição entre a “era industrial” para a “era pós-industrial e do conhecimento”, se não faz sentido pensar em “modelos” integrados e complementares em que as instituições, sem imposição do Estado – como aconteceu com os agrupamentos das escolas básicas e secundárias – se articulem e complementem na construção de projectos alargados e singulares, numa perspectiva multidisciplinar, multidimensional e multisectorial.

A relação entre a formação e mercado de emprego é um outro tipo de questionamento. Sendo uma relação interdependente, o que questiono é o facto de cada vez mais “a qualidade” de ensino de uma instituição ser medida pela inserção profissional dos estudantes. Não são as instituições de ensino superior que controlam a economia nem regulam o mercado de trabalho.

Ora o que está em causa é que o ensino superior tem como finalidade encontrar mecanismos de formação de “excelência” numa articulação profunda com os diferentes sectores sociais, culturais e empresariais. Articulação profunda que implica a co-construção das formações e uma dinâmica formativa (escolar e não escolar) entre as questões estruturais do pensamento, do conhecimento e das profissões e da sua mutabilidade. Para isto, a formação tem de ser exigente e livre de investigar, formar e construir pensamento que esteja para além das volatilidades do mercado de trabalho e do emprego. Caso contrário, os cursos de letras e de estudos clássicos, por exemplo, deixariam de existir. E no tempo presente, bem como no que há-de chegar, áreas como a filosofia e a história, por exemplo, não são estruturantes ao desenvolvimento tecnológico, social e cultural?

No que se refere à governança e os modos de governo, constata-se que a educação e a formação superiores já não são apenas uma responsabilidade do Estado e das organizações educativas e formativas. Embora lhes caiba um papel preponderante, a complementaridade com diferentes tipos de parceiros e de programas é fundamental. Complementaridade esta que cruza diferentes tipos de sectores sociais, culturais, associativos, empresariais (públicos e privados) numa pluralidade de poderes e numa rede de interdependências recíprocas, nacionais e internacionais.

A governança deste subsistema implica a capacidade de mobilização dos diferentes actores sociais na construção, implementação e avaliação das políticas das instituições de ensino. Mobilização que comporta desafios e riscos, mas que poderá ser um factor de um maior incremento da participação das diferentes comunidades de sentidos na vida das instituições de ensino superior e, por esta via, contribuir para uma também maior interacção social, cultural e profissional, em hierarquias nem hegemonias.

Neste contexto, os modos de governo das instituições têm de se situar entre um “modelo” ou “modelos” diferenciados que passam por outras formas que não a do “modelo” único de fundação, ou formas gestionárias centradas apenas num determinado conceito de “eficácia” organizacional e financeira. Nestes modos de governo, a colegialidade, o papel e a participarão dos estudantes e de outros actores sociais, afiguram-se essenciais, como elementos políticos, de formação e de cidadania.

Tudo isto implica também uma reflexão profunda relacionada com o papel do Estado na condução das políticas públicas. Este papel afigura-se essencial como elemento proactivo na construção de um bem comum tendo em conta, como refere João Barroso, “a multiplicação das instâncias e momentos de decisão, a diversificação das formas de associação no interior dos espaços públicos e o envolvimento de um maior número de actores”. O que significa, nas palavras do mesmo autor, que se “exige um papel renovado na acção do Estado, com o fim de compatibilizar o desejável respeito pela diversidade e individualidade dos cidadãos, com a prossecução de fins comuns necessários à sobrevivência da sociedade – de que a educação é um instrumento essencial”.

Na actual discussão sobre o ensino superior público, os instrumentos legais produzidos, bem como os discursos dominantes, muitas destas temáticas, infelizmente, não fazem parte da agenda. Andam um pouco afastadas das reflexões, quer no âmbito do poder político quer no âmbito das instituições de formação (e nas suas estruturas de cúpula), quer no âmbito dos sindicatos. No Estado, pelo facto de não querer perceber que as mudanças se fazem com as pessoas e que os relatórios e estudos desenvolvidos pelas instâncias internacionais, não são apenas isso. São também instrumentos políticos. Contém determinadas visões de sociedade que se quer construir. Nas instituições, pelo facto de estarem preocupadas com respostas a curto prazo de acordo com as solicitações e as determinações do Estado, bem como em dar resposta a alguns poderes corporativos instituídos no interior das organizações. Nos sindicatos, pela dificuldade de se interrogarem e de se desligarem de determinados modelos e de não desenvolverem discursos e acções políticas mais consentâneas com os grandes desafios do tempo presente.

Um novo tempo exige outros questionamentos e outras respostas. Alicerçados na história mas com olhares e acções de futuro e num esforço de racionalidade e criatividade que consiga ver para além das tendências políticas e sociais mais mercantilizadas.


António Ângelo Vasconcelos - 14-06-2007 10:52