(algumas ideias sobre as
políticas e os modos de governação - em contracorrente)
As profundas transformações das sociedades contemporâneas interpelam
a educação e formação a nível do ensino superior sob vários pontos de
vista – político, organizacional, científico e cultural. Interpelação
que envolve contextos, actores e acções diversificadas, oriundas das
organizações académicas, do Estado, da sociedade e do mercado, no plano
nacional e internacional. Interpelação que, por sua vez, se situa no
fechar de um ciclo sociohistórico em que se desenvolveram e construíram
determinadas políticas, determinadas ideias de ensino superior, modos de
organização, de governo e de financiamento, de modelos curriculares, de
estatutos de docentes, de pensar a pedagogia, de pensar as relações
entre a formação e o mercado.
Assim, afigura-se necessária, no contexto da crise do Estado
Providência, e na emergência de outros modos de administração e
coordenação, uma reflexão profunda sobre a dimensão política e pública
do ensino superior. Reflexão que implica a reafirmação dos seus valores
fundadores centrados mais nas finalidades do que nos meios e que de
algum modo encontrem alternativas à difusão transnacional de cânones de
índole neoliberal em que a privatização dos serviços públicos e a
importação, muitas vezes acrítica, de modelos empresariais se constituem
quase como únicas alternativas à construção e ao desenvolvimento da
educação e formação superiores como um bem comum.
Neste contexto, emerge a necessidade de repolitizar este tipo de
educação e formação. E esta repolitização da educação e formação no
âmbito do ensino superior público passa, entre outras, por alguns
questionamentos fundamentais de que destaco: a actual separação entre o
ensino superior e o politécnico, a relação entre a formação e o mercado
de trabalho; a governança e os modos de governo, o papel do Estado.
No primeiro caso, a actual separação entre o ensino
universitário e o ensino politécnico, foi criada nos
anos 70 do século XX, com a designação de “ensino superior de curta
duração”, e de algum modo “imposta” a Portugal por instâncias
internacionais como o Banco Mundial. Esta separação distinguia de algum
modo as diferentes profissões. Para umas era preciso uma formação de
“excelência” e investigativa, para outras bastava uma qualificação mais
especializada e mais de acordo com o mercado de trabalho. Ou pelo
daquilo que se considerava ser o mercado de trabalho. Não deixa de ser
curioso que no âmbito destas profissões, mais ou menos de segunda, não
fossem apoiadas as formações ligadas às artes e fosse incluída a
formação dos professores do ensino básico.
Por outro lado, com a globalização nos diferentes campos de
intervenção a questão de escala não é de somenos importância, sob o
ponto de vista da formação, da investigação e da produção de
conhecimento. Também com a reorganização curricular no âmbito da
“Declaração de Bolonha” esta separação entre ensino superior
universitário e politécnico afigura-se pouco pertinente. Veja-se, por
exemplo, o caso da investigação. Ela não é apanágio de um ou de outro
subsistema. Pelo contrário, a investigação e a produção de conhecimento
nas diferentes esferas da actuação humana é um elemento primordial na
sociedade contemporânea portuguesa de modo a criar quadros de
inteligibilidade e de intervenção política, social, cultural,
tecnológica, artística, entre outros.
Por isso, a interrogação que se coloca é, num contexto de transição
entre a “era industrial” para a “era pós-industrial e do conhecimento”,
se não faz sentido pensar em “modelos” integrados e complementares em
que as instituições, sem imposição do Estado – como aconteceu com os
agrupamentos das escolas básicas e secundárias – se articulem e
complementem na construção de projectos alargados e singulares, numa
perspectiva multidisciplinar, multidimensional e multisectorial.
A relação entre a formação e mercado de emprego é um outro tipo de
questionamento. Sendo uma relação interdependente, o que questiono é o
facto de cada vez mais “a qualidade” de ensino de uma instituição ser
medida pela inserção profissional dos estudantes. Não são as
instituições de ensino superior que controlam a economia nem regulam o
mercado de trabalho.
Ora o que está em causa é que o ensino superior tem como finalidade
encontrar mecanismos de formação de “excelência” numa articulação
profunda com os diferentes sectores sociais, culturais e empresariais.
Articulação profunda que implica a co-construção das formações e uma
dinâmica formativa (escolar e não escolar) entre as questões estruturais
do pensamento, do conhecimento e das profissões e da sua mutabilidade.
Para isto, a formação tem de ser exigente e livre de investigar, formar
e construir pensamento que esteja para além das volatilidades do mercado
de trabalho e do emprego. Caso contrário, os cursos de letras e de
estudos clássicos, por exemplo, deixariam de existir. E no tempo
presente, bem como no que há-de chegar, áreas como a filosofia e a
história, por exemplo, não são estruturantes ao desenvolvimento
tecnológico, social e cultural?
No que se refere à governança e os modos de governo, constata-se que
a educação e a formação superiores já não são apenas uma
responsabilidade do Estado e das organizações educativas e formativas.
Embora lhes caiba um papel preponderante, a complementaridade com
diferentes tipos de parceiros e de programas é fundamental.
Complementaridade esta que cruza diferentes tipos de sectores sociais,
culturais, associativos, empresariais (públicos e privados) numa
pluralidade de poderes e numa rede de interdependências recíprocas,
nacionais e internacionais.
A governança deste subsistema implica a capacidade de mobilização dos
diferentes actores sociais na construção, implementação e avaliação das
políticas das instituições de ensino. Mobilização que comporta desafios
e riscos, mas que poderá ser um factor de um maior incremento da
participação das diferentes comunidades de sentidos na vida das
instituições de ensino superior e, por esta via, contribuir para uma
também maior interacção social, cultural e profissional, em hierarquias
nem hegemonias.
Neste contexto, os modos de governo das instituições têm de se situar
entre um “modelo” ou “modelos” diferenciados que passam por outras
formas que não a do “modelo” único de fundação, ou formas gestionárias
centradas apenas num determinado conceito de “eficácia” organizacional e
financeira. Nestes modos de governo, a colegialidade, o papel e a
participarão dos estudantes e de outros actores sociais, afiguram-se
essenciais, como elementos políticos, de formação e de cidadania.
Tudo isto implica também uma reflexão profunda relacionada com o
papel do Estado na condução das políticas públicas. Este papel
afigura-se essencial como elemento proactivo na construção de um bem
comum tendo em conta, como refere João Barroso, “a multiplicação
das instâncias e momentos de decisão, a diversificação das formas de
associação no interior dos espaços públicos e o envolvimento de um maior
número de actores”. O que significa, nas palavras do mesmo
autor, que se “exige um papel renovado na acção do Estado, com o
fim de compatibilizar o desejável respeito pela diversidade e
individualidade dos cidadãos, com a prossecução de fins comuns
necessários à sobrevivência da sociedade – de que a educação é um
instrumento essencial”.
Na actual discussão sobre o ensino superior público, os instrumentos
legais produzidos, bem como os discursos dominantes, muitas destas
temáticas, infelizmente, não fazem parte da agenda. Andam um pouco
afastadas das reflexões, quer no âmbito do poder político quer no âmbito
das instituições de formação (e nas suas estruturas de cúpula), quer no
âmbito dos sindicatos. No Estado, pelo facto de não querer perceber que
as mudanças se fazem com as pessoas e que os relatórios e estudos
desenvolvidos pelas instâncias internacionais, não são apenas isso. São
também instrumentos políticos. Contém determinadas visões de sociedade
que se quer construir. Nas instituições, pelo facto de estarem
preocupadas com respostas a curto prazo de acordo com as solicitações e
as determinações do Estado, bem como em dar resposta a alguns poderes
corporativos instituídos no interior das organizações. Nos sindicatos,
pela dificuldade de se interrogarem e de se desligarem de determinados
modelos e de não desenvolverem discursos e acções políticas mais
consentâneas com os grandes desafios do tempo presente.
Um novo tempo exige outros questionamentos e outras respostas.
Alicerçados na história mas com olhares e acções de futuro e num esforço
de racionalidade e criatividade que consiga ver para além das tendências
políticas e sociais mais mercantilizadas.
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