... a defesa das ideias


• 22-03-2007 •
Educação
por Luciano Pereira
(Professor adjunto e coordenador do Departamento de línguas da ESE de Setúbal)

 

A formação de professores no contexto de Bolonha

 

A globalização, os avanços científicos e tecnológicos, e a guerra económica entre os U.S.A. e a U. E. não podiam deixar de se repercutir nas estratégias e no tipo de formação dos indivíduos, de educação e de sistemas educativos. As reformas tornaram-se inevitáveis. A sociedade do conhecimento não se compadece com arcaicas estruturas sociais socialmente estratificadas, politicamente determinadas, onde reina o clientelismo e o nepotismo.

Portugal tem sido, na Europa, o último reduto da mentalidade “clientelista” mais retrógrada. Meia dúzia de famílias, seculares, dominam os sectores chaves da administração pública. Em cada região e em cada cidade perpetuam-se velhas oligarquias infiltradas em todos os partidos políticos, em todas as áreas da administração e em todas as instituições de ensino e de formação com alguma autonomia. O objectivo é apenas um: perpetuar o poder político e a segurança económica da família, frequentemente à custa do erário do estado. São elas as maiores responsáveis pela falta de competitividade do sector público, pela inércia cultural e pela desvalorização da investigação. Todos sabem que para obter uma bolsa, um emprego, um cargo mais vale o factor “C” que qualquer prova de inequívoca competência.

Em todos os países desenvolvidos a investigação tornou-se o motor do desenvolvimento social e o investigador, para além do prestígio, viu-se empossado de um novo poder que lhe permite ser o garante da competitividade e de mecanismos de reforço individuais baseados no mérito e no esforço.

São os investigadores que estão na origem dos avanços científicos e tecnológicos e nas alterações das práticas de produção assim como de novas condições de vida e de trabalho. Neste contexto, estará uma sociedade profundamente comprometida com a lei dos favores apta a empreender as reformas educativas que exigem mudanças tão profundas na nossa mentalidade e nas nossas práticas culturais mais arreigadas?

A formação de professores, a gestão educacional, a organização curricular, a avaliação institucional e o próprio sistema educativo são antes de mais produtos de uma cultura e de uma mentalidade. Para um país que passou do fascismo para a democracia sem substituir a origem social do conjunto nuclear da sua elite intelectual o desafio é imenso. O projecto educativo assente na divisão social do trabalho, marcado pela clara definição de fronteiras entre as funções intelectuais e as funções instrumentais que determinavam a separação entre dirigentes e trabalhadores não tem sido eficazmente substituído por um outro que respeite as necessidades do novo mundo tecnológico.

Os princípios pedagógicos que pretendiam dar respostas às demandas de uma sociedade cujo modo dominante de produção baseava-se numa tecnologia rígida e estável, exigiam uma formação escolar centrada em conteúdos e em actividades mas olvidavam a importância da relação entre o aluno e o conhecimento. Não existia nenhuma preocupação com a integração entre conteúdos e métodos, nenhuma forma de incentivar o domínio intelectual das práticas sociais e produtivas. Da memorização de conhecimentos e da repetição de procedimentos que era o treino indispensável e exclusivo para enfrentar o mundo do trabalho e da vida social; da escola organizada de modo hierarquizado e centralizado para assegurar a disciplina rígida exigida pelos diferentes contextos sociais da vida e do trabalho, passámos às competências de difusas militâncias críticas, cientifica e tecnologicamente mal preparadas.

A globalização da economia e a reestruturação produtiva transformaram de forma radical as necessidades de formação. Novos princípios científicos exigiram novos materiais e novos equipamentos. Os processos de trabalho modernos exigem flexibilidade e adaptabilidade. Exigiu-se um novo tipo de profissional, dotado de competências de comunicação variadas, com um sólido domínio das tecnologias e das técnicas de informação, de várias linguagens, de várias línguas e de uma autonomia intelectual suficiente para resolver problemas práticos extremamente diversificados. O espírito de iniciativa e a criatividade tornaram-se as competências mais apreciadas num universo em constante mutação.

Ao domínio dos conteúdos dever-se-ia ter-se substituído o conhecimento científico, os métodos de investigação-acção, os projectos de intervenção, o gosto pela actualização constante, pelas novas situações e pelos novos desafios.

Num mundo globalizado, a capacidade de se comprometer com causas regionais e internacionais, o espírito crítico e criativo é determinante para o reforço da identidade e da auto-estima.

Aos professores exigiu-se a construção de uma nova identidade profissional e a integração de novas formas de trabalho. O mundo contemporâneo exigiu uma cultura geral sólida e diversificada, competências técnicas variadas e versáteis. A intervenção do professor na escola não pode omitir a sua íntima relação com o mundo do trabalho, com as tecnologias, com os meios de comunicação e de informação, com os paradigmas do conhecimento, com as formas do exercício da cidadania, com os objectivos de uma formação geral que incluam a criatividade, a solidariedade, a qualidade de vida, a preservação do meio ambiente, etc.

Os saberes pedagógicos e didácticos foram alargados, os modos de formação revistos, os métodos e técnicas de ensino repensados. Formar indivíduos, capazes de interpretar a realidade e nela intervir, envolvendo-se nos problemas que dizem respeito à preservação da natureza, à harmonia da sociedade, à política, à cultura, ao mundo do trabalho e às questões que dizem respeito à sua própria vida era o grande objectivo.

A escola devia ter incentivado, apoiado e acompanhado o desenvolvimento de competências para uma real e efectiva intervenção social.

A mudança das práticas organizacionais e de gestão, assim como uma maior individualização do ensino, permitindo diferentes ritmos, diferentes curricula, diferentes interesses não pode ser mais adiada.

As regiões, as autarquias, os bairros, os pais têm que se apropriar das suas escolas. Cada aluno tem que beneficiar de um acompanhamento individualizado, para aprender a pensar o global e a agir sobre o local.

Serão os curricula dos novos cursos do formato de Bolonha capazes de fazer tudo aquilo que devia ter sido feito, sem demagogias, com rigor, eficácia e brio e sem esquecer que a disciplina escolar cria rotinas de trabalho que dão segurança e conforto perante as adversidades, que estudar também exige algum isolamento e compenetração, e sobretudo que o saber não ocupa lugar e nunca é crime?

Serão os novos cursos capazes de mudar mentalidades e fazer com compadrios e clientelismos sejam de vez erradicados da nossa cultura colectiva?