... a defesa das ideias


• 31-10-2007 •

por Isabel Henriques de Jesus
(Professora Departamento de Ciências da Educação da ESE)


 

Palavras vivas

 

“As palavras técnicas não têm sexo. Não têm cicatrizes, não têm história, não oferecem luta, na maior parte das vezes não tiveram tempo para viver. São neutras. Estas palavras servem de máscara às mulheres e aos homens que as utilizam”. (Marie Cardinal, Autrement dit)

E, no entanto, as mulheres e os homens que as proferem encerram-nas numa redoma, acariciam-nas e alimentam-nas para as fazerem medrar, usam-nas como pele que distingue os que estão dentro e os que estão fora, os que dominam e os que devem ser dominados, ou ensinados, ou tratados, ou manipulados…

Essas palavras fazem parte de uma nomenclatura que define uma determinada área do conhecimento: linguagem médica, linguagem jurídica, linguagem psicológica, linguagem sociológica, linguagem pedagógica, (…) e o fechamento desse léxico confere legitimidade e autoridade ao saber que assim é enunciado e às pessoas que o detêm. A pretensa neutralidade do discurso científico afasta-o do mundo e da vida, compartimentando e especializando o modo como descrevemos os fenómenos e, muitas vezes, garantindo a manutenção de preconceitos ou a reprodução de estereótipos. Lembremos, por exemplo, como a autoridade do discurso científico permitiu legitimar a soberania de um género/sexo sobre o outro até que grupos de mulheres, um pouco por todo o lado e, nem sempre, por meios ortodoxos, abanaram, minaram e fizeram explodir as confortáveis “certezas” em que assentava todo um edifício socialmente construído e cientificamente legitimado. Ou seja, os nossos discretos órgãos genitais, escondidos, envergonhados, não podiam competir com a poderosa exuberância masculina e, daí, o melhor seria convencermo-nos da nossa passividade e submissão e deixarmos aos nossos companheiros de afecto o papel activo, explorador e conquistador. A grande incógnita é como é que as mulheres aceitaram este estado de coisas ao longo de tantas e tantas gerações. Mas esta é uma questão que deixaremos para uma próxima oportunidade. Podem os nossos leitores/as ir pensando sobre o assunto…

Por agora, usemos do cérebro, elemento que já está provado ser comum aos dois sexos, mas, à maneira de António Damásio, permitamos que as emoções e os sentimentos integrem os nossos actos racionais, isto é, deixemos que as nossas experiências, as nossas revoltas, os nossos medos e dissabores, mas também a sedução, o amor, a imaginação e tudo o mais de que é feita esta trama com que tecemos as nossas vidas sirva de lastro para, sem nos afundarmos, pensarmos a nossa profissão de professores.

Como então transformar a aridez da linguagem técnico/científica em símbolos carregados de significação para alunos e professores, formandos e formadores? Como entrosar o domínio teórico com a vida, com os interesses, as aspirações, as expectativas, os trambolhões não cicatrizados? Criar espaços formativos sensíveis, flexíveis, adaptáveis às necessidades e atentos às pessoas que os integram permite despertar sorrisos de sentido e de inteligibilidade, vivos, e bem distantes das faces cerosas e apáticas que, acriticamente, presenciam discursos cuja “neutralidade” garante a “veracidade”.

Pedir, por exemplo, a professores que, temporariamente se tornam formandos também, que vão ao cinema, ao teatro, que escolham um texto literário, ou musical, uma escultura ou uma pintura e que, nessas peças, encontrem desafios que se transformem em ideias, tarefas, ou estratégias educativas, é incitá-los a ultrapassarem as restrições programáticas, a alargarem os seus horizontes de pesquisa, mas, acima de tudo, permitir-lhes sair dos limites que nos impomos e usar o pensamento e a imaginação como recursos interiores, acessíveis a todos nós, e não condicionados pelas limitações objectivas que tão rápida e eficazmente incorporamos, assim justificando a paralisia.

E, então, depois do voo, a segurança e a neutralidade das palavras técnicas, parecem-nos coisa menor quando comparadas com a liberdade da criação. Quando, finalmente, retiramos as máscaras percebemos que só as mentes são potencialmente livres e capazes de enfrentarem obstáculos e constrangimentos. E então, as palavras técnicas deixam de ser neutras porque transportam significados vivenciais, passam a ter história, a ter sexo, a oferecer luta e a evoluir no tempo de todos os que com elas entrecruzam os caminhos.


Isabel Henriques de Jesus - 31-10-2007 14:15