“As palavras técnicas não têm sexo.
Não têm cicatrizes, não têm história, não oferecem luta, na maior parte das
vezes não tiveram tempo para viver. São neutras. Estas palavras servem de
máscara às mulheres e aos homens que as utilizam”. (Marie Cardinal,
Autrement dit)
E, no entanto, as mulheres e os homens que as proferem encerram-nas numa
redoma, acariciam-nas e alimentam-nas para as fazerem medrar, usam-nas como
pele que distingue os que estão dentro e os que estão fora, os que dominam e
os que devem ser dominados, ou ensinados, ou tratados, ou manipulados…
Essas palavras fazem parte de uma nomenclatura que define uma determinada
área do conhecimento: linguagem médica, linguagem jurídica, linguagem
psicológica, linguagem sociológica, linguagem pedagógica, (…) e o fechamento
desse léxico confere legitimidade e autoridade ao saber que
assim é enunciado e às pessoas que o detêm. A pretensa neutralidade do
discurso científico afasta-o do mundo e da vida, compartimentando e
especializando o modo como descrevemos os fenómenos e, muitas vezes,
garantindo a manutenção de preconceitos ou a reprodução de estereótipos.
Lembremos, por exemplo, como a autoridade do discurso científico permitiu
legitimar a soberania de um género/sexo sobre o outro até que grupos de
mulheres, um pouco por todo o lado e, nem sempre, por meios ortodoxos,
abanaram, minaram e fizeram explodir as confortáveis “certezas” em que
assentava todo um edifício socialmente construído e cientificamente
legitimado. Ou seja, os nossos discretos órgãos genitais, escondidos,
envergonhados, não podiam competir com a poderosa exuberância masculina e,
daí, o melhor seria convencermo-nos da nossa passividade e submissão e
deixarmos aos nossos companheiros de afecto o papel activo, explorador e
conquistador. A grande incógnita é como é que as mulheres aceitaram este
estado de coisas ao longo de tantas e tantas gerações. Mas esta é uma
questão que deixaremos para uma próxima oportunidade. Podem os nossos
leitores/as ir pensando sobre o assunto…
Por agora, usemos do cérebro, elemento que já está provado ser comum aos
dois sexos, mas, à maneira de António Damásio, permitamos que as emoções e
os sentimentos integrem os nossos actos racionais, isto é, deixemos que as
nossas experiências, as nossas revoltas, os nossos medos e dissabores, mas
também a sedução, o amor, a imaginação e tudo o mais de que é feita esta
trama com que tecemos as nossas vidas sirva de lastro para, sem nos
afundarmos, pensarmos a nossa profissão de professores.
Como então transformar a aridez da linguagem técnico/científica em
símbolos carregados de significação para alunos e professores, formandos e
formadores? Como entrosar o domínio teórico com a vida, com os interesses,
as aspirações, as expectativas, os trambolhões não cicatrizados? Criar
espaços formativos sensíveis, flexíveis, adaptáveis às necessidades e
atentos às pessoas que os integram permite despertar sorrisos de sentido e
de inteligibilidade, vivos, e bem distantes das faces cerosas e apáticas
que, acriticamente, presenciam discursos cuja “neutralidade” garante a
“veracidade”.
Pedir, por exemplo, a professores que, temporariamente se tornam
formandos também, que vão ao cinema, ao teatro, que escolham um texto
literário, ou musical, uma escultura ou uma pintura e que, nessas peças,
encontrem desafios que se transformem em ideias, tarefas, ou estratégias
educativas, é incitá-los a ultrapassarem as restrições programáticas, a
alargarem os seus horizontes de pesquisa, mas, acima de tudo, permitir-lhes
sair dos limites que nos impomos e usar o pensamento e a imaginação como
recursos interiores, acessíveis a todos nós, e não condicionados pelas
limitações objectivas que tão rápida e eficazmente incorporamos, assim
justificando a paralisia.
E, então, depois do voo, a segurança e a neutralidade das palavras
técnicas, parecem-nos coisa menor quando comparadas com a liberdade da
criação. Quando, finalmente, retiramos as máscaras percebemos que só as
mentes são potencialmente livres e capazes de enfrentarem obstáculos e
constrangimentos. E então, as palavras técnicas deixam de ser neutras porque
transportam significados vivenciais, passam a ter história, a ter sexo, a
oferecer luta e a evoluir no tempo de todos os que com elas entrecruzam os
caminhos.
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