O professor do pelotão da esperança

Diário de Notícias (Internet), 3 de Fevereiro de 2000

 

Uma história de vida que dava um filme. Domingos Soares conta tudo sem transmitir emoções. Agora, reaprende português

 

Luísa Melo

 

em Díli


Quando Domingos Doutel Soares se apresentou ontem aos colegas do curso de reciclagem de língua portuguesa com uma pequena história da sua vida foi ovacionado de pé. Após a ocupação indonésia, e com menos de 20 anos, comandou o Pelotão da Esperança, um grupo armado das Falintil constituído por jovens e estudantes, iniciando assim uma vida de resistência. Foi capturado por duas vezes, espancado por milícias, mas nunca cedeu. Agora, frequenta o curso para poder ser professor do ensino básico.

 

"É uma honra e uma alegria para mim voltar aos velhos tempos e poder ensinar as crianças", explica Domingos Soares. "Não podemos falar o indonésio porque ele veio com armas e com a morte. Se não querem o português nem Timor como está podem voltar para a Indonésia", acrescenta. Mas porquê o português? A resposta é pronta: "Portugal pode não ter desenvolvido muito Timor porque está longe, mas deixou a cultura e a evangelização. Portugal não veio com armas, mas com uma cruz. São 450 anos da nossa história."

 

Domingos Doutel Soares fala com calma, sem grandes dúvidas, com orgulho no seu país e disposto a fazer tudo o que os portugueses que estão em Timor lhe pedirem, quanto mais não seja porque "vieram de tão longe e deixaram a família porque amam Timor". Mas é a sua história de vida que domina o discurso. E assim contada, sem grandes dores faladas, até parece tão fácil. Estava no último ano do curso de professor do ensino básico quando se deu o golpe de Estado na Indonésia, ingressou as Falintil e foi para a fronteira de Bobonaro comandar o Pelotão da Esperança. Em 1976, com a invasão indonésia, fugiram para o mato e juntaram-se à "guerrilha".

 

Em 1979 foi capturado pela primeira vez e propuseram-lhe que fosse "polícia indonésia em Timor, tipo um espião, mas não aceitei". Trabalhou então no cais de Díli. Entretanto, tira a carta de condução e entre 1980 e 1990 é condutor de empresas, "sempre chinesas, nunca trabalhei com os indonésios", sublinha. Dois anos mais tarde, após o massacre de Santa Cruz, volta à cadeia militar da Indonésia por "estar a organizar pequenas revoltas de jovens e a fazer contactos com as Falintil no mato". Esteve três meses preso, valeu-lhe a intervenção de uma senhora que conhecia na Cruz Vermelha Internacional que o tirou de lá.

 

Detido e batido, mas não vencido, Domingos Soares conseguia, em 1993, crédito para comprar um minibus. Tratava-se de um transporte público, mas era também uma forma de continuar a ajudar as Falintil, transportando guerrilheiros e dar todo o apoio necessário.

 

Quando a ONU abriu a primeira sede em Díli, trabalhou como condutor da UNAMET, "era o único condutor e fiscalizava e localizava as milícias". Um cargo que não passou despercebido aos inimigos. A 4 de Julho de 1999, conta com datas precisas, "quando eu, o meu chefe e jornalistas da RTP fomos visitar um grupo de refugiados em Liquiçá fomos assaltados por milícias". Mais tarde, a 6 de Setembro, quando a casa do bispo D. Ximenes Belo foi atacada, Domingos Soares foi "capturado pelos tropas indonésios, que tinham armas, e pelos milícias, que estavam com catanas. Apanhei muita tareia. Queriam-me matar. Levaram a minha carrinha para Timor Ocidental e a minha mulher e os meus filhos para Kupang. Só regressaram a 21 de Outubro". Domingos Soares conseguiu escapar enquanto lhe batiam e escondeu-se numa casa na praia, de onde só saiu no dia seguinte de manhã, disfarçado de milícia, para fugir para o mato a caminho de Ermera. Desceu do mato a 30 de Setembro para pedir ajuda humanitária à AMI, principalmente remédios. A situação era muito grave. Mal as tropas da Interfet entraram em Timor, Domingos Soares começou "a trabalhar com os gurkas como condutor". Ainda hoje é condutor da UNTAET, mas quer mesmo é ser professor.