Sobre o autor...
Ruben A., nome literário de Ruben Alfredo Andresen Leitão (1920-1975), considerava Agostinho da Silva como um «espírito superior». Teve-o como professor particular e confessa que ele foi «uma força de rumo definitivo» na sua formação.
Aqui ficam dois extractos dessas memórias de uma relação frutuosa discípulo-mestre.
A., Ruben (1966) O Mundo à Minha Procura - II. Lisboa: Assírio & Alvim/ Obras de R.A., nº 6, 1993, 278 p. [autobiografia]
O Agostinho da Silva dava-me lições que eu repartia com o Henrique Salgado. Tornara-se esta a única ocupação diária que praticava. Ali, duas horas na mansarda da casa do Henrique, eu de boca aberta começava a ouvir o que em doses suaves o Agostinho me ia mostrando. Ele mesmo trazia os 1ivros necessários à nossa aprendizagem. Eu estranhava o método não havia papa feita. Tinha que ler muitos livros, verdadeira chatice! Era tudo uma chatice. No entanto foi a vida do dia a dia do Agostinho que começou a entusiasmar-me. Ele deitava-se às nove da noite e levantava-se das duas e meia para as três. Trabalhava depois, de corrida, até às oito-nove da manhã. A seguir dava explicações como quem fabrica salsichas. Eu olhava para ele, mirava um monstro. «Às três da manhã?» «Sim» – respondia-me naturalmente. Foi a grande época do Agostinho, época em que ele acreditou na divulgação da cultura, em que publicou os Cadernos de Cultura e os Cadernos de Antologia. Tudo servido em prestações inofensivas que nós íamos deglutindo sem esforço, sem laranja para tirar o gosto do óleo de fígado de bacalhau. O Agostinho sabia tudo, foi o primeiro homem que encontrei que ouvia as sonatas de Beethoven às quatro da madrugada, num velho gramofone, tocadas pelo Fritz Kreisler. Ao mesmo tempo aprendia a dançar a valsa lendo o Larousse ilustrado em dez volumes. Que fenómeno este tipo, quando fresco como uma alface – e ele era vegetariano – aparecia ao fim da tarde para nos ler Horácio, César, Tito Lívio, Virgílio e tantos outros heróis latinos de que até à data eu sentira nojo. Ele lia aquilo traduzindo directamente do latim, como um janota. Eu de boca aberta. E havia ali coisas que não eram asneira nenhuma! Trazia mais livros, deixava-os ficar, como quem deixa ficar maço de cigarros para tentar o vício. Depois contava histórias e explicava-me a razão pela qual tinha abandonado o ensino no liceu de Aveiro. Recusou-se a assinar a declaração anticomunista necessária ao desempenho das suas funções públicas. Dizia ele que, de facto, não era comunista, nunca fora, mas não sabia se algum dia viria a ser, não podia portanto, na sua consciência, assumir uma jura para um juízo futuro. Jamais assinaria um documento dizendo que nunca seria comunista, como nunca assinaria nenhum documento que o obrigasse a dizer que nunca seria católico, que nunca seria ateu ou assassino. Um compromisso definitivo, como este, era-lhe impossível, absolutamente impossível de assumir, e a sua dignidade de homem impedia-o de assinar o que quer que fosse desse teor. Foi recambiado, expulso do ensino como comunista! Puxa, como é a ironia da educação. Ele apenas provou, e ninguém percebeu – porque a estupidez oficial é colectiva – que os termos em que estava redigida a declaração eram de facto abusivos da dignidade do homem. Quem é que pode assinar um documento comprometendo-se a que de futuro nunca será republicano, socialista, gatuno, homossexual, adúltero, pecador? Se em religião o aspecto do futuro fosse assumido pelas promessas do presente, não havia pecadores, um mar de rosas recheado de partículas paradisíacas. (pp. 95-97)
O Agostinho da Silva foi homem mais culto, mais lido, com uma sólida base de grego e latim, que da conversa fazia um permanente diálogo. O obscuro e o nebuloso – tão bem explicado pelos meus professores de liceu –, encontrava nele um filtro de transparência, cuja contribuição para a clareza se tornava um verdadeiro dom, sobretudo num país de gente complicada. Ensinava-nos a não perder tempo, a ganhar tempo, a completar iniciativas que se discutiam. Ouvia as nossas asneiras como quem lê o Discurso do Método em voz alta. Sentia o meio donde vínhamos, um meio onde todos estão contentíssimos com a sua ignorância, como tão bem dizia a Sophia, uma sociedade em que é preciso trabalhar pouco para ganhar dinheiro e se encontra uma falta de respeito pelo trabalho intelectual dos outros. O Agostinho dignificava um mundo, fora das conversas que eu tinha, mero papagaio entre palradores, a influência que dia a dia ia exercendo sobre mim equilibrava o mundo moderno que o Manel me servia aos fins-de-semana. O Agostinho lia-me um diálogo de Platão, como quem está ali em baixo, na taberna da esquina que dá para a Academia das Ciências, entra e ouve uma conversa. Lia, olhava para nós, e vendo que percebíamos continuava para a frente. Depois dialogava. Com o escopro e o martelo ia abrindo brechas na minha cabeça, modelando, não à sua maneira – e esta a sua enorme mensagem –, mas sim ia abrindo lenhos cá por dentro, ranhuras que só os meus olhos pudessem ver. Fazia-me como se faz aos coelhos depois de mortos, virava a pele de dentro para fora e mostrava ao sol do mundo a sangria que imediatamente corria de um bicho separado em dois. Trazia livros, não nos obrigava a comprar nada. A Filosofia, a História, a Literatura, a Arte tinham um denominador comum – o Homem. Era o exemplo como homem que ele queria apresentar quando nos vinha dar aulas. O meu latim começava a silabar-se diferente, o ódio a ser mais aceitável, a Psicologia e a Moral a terem uma razão de existência, um mundo em talhadas, diversas das que o meu querido Manuel da Parada servia a crédito, mesmo a ricos relutantes a pagar logo, às boas doses de queijo de Serpa que na entrada do Inverno ele mostrava aos entendidos. O Agostinho, como disse, era vegetariano, coisa que eu não compreendia pois vivia alimentado pelo bom bife de lombo que o encontro casual do nascimento pusera no meu prato. Quando o Agostinho um dia me disse que se um inimigo precisasse dele, decerto que ele apressaria o passo para abrir ainda mais o seu coração. «Este tipo é anormal», dizia para comigo. No entanto ia arquivando nas gavetas despreocupadas, cheias de teias de aranha, muita tralha que percebia sem perceber. Sentado, olhava para ele como quem está a falar com Buda, Sócrates, S. Francisco de Assis, Goethe, Lenine, e sabe que ali está um elixir, mas a que camadas de surro não nos deixam ainda ver os amarelos bem limpos. Depois das aulas do Agostinho, das conversas, para ser mais justo, eu ficava exausto, como tendo levado uma coça, chicoteado, pranchado de acordo com a idade da minha pedra lascada. A prostração do eu irrompia total. Arrasava-me. O Agostinho igualava uma espécie de emulsão de Scott; tanto nos fazia descobrir encantos na leitura de uma ode de Horácio, como no método Montessóri, em Goethe, como em Ticiano ou no eclipse do Sol. (pp. 101-103)
[topo] [voltar]
|