Uma redacção de
Natal ...
Por Ana Pessoa
2002
Anteontem Alice saíra do País das Maravilhas e estava
ali, junto à casa dos professores convidados, face
ao relvado do pátio interior da Escola. Viera procurar
inspiração. Tinha um livro numa mão e uma caneta
na outra. A chuva tinha sido substituída pelo sol
frio. Os pardais saltitavam nervosamente. A manhã
estava óptima. O problema era o péssimo humor da
menina: a professora mandara-a fazer um texto sobre
a época festiva que se avizinha! Era nisso que pensava
quando, para seu grande espanto, viu alguns rapazes
e raparigas que traziam consigo uns objectos estranhos
e saíam de umas janelas enormes. Tomou mais atenção,
fechou a caneta e o bloco e, escondendo-se atrás
de uma das colunas das arcadas, percebeu que os
jovens transportavam esculturas, quase do tamanho
dela. Aproximou-se do pequeno grupo e, andando à
volta dele, foi vendo o que faziam. Estavam tão
entretidos, tão satisfeitos mas... tão pensativos,
ao mesmo tempo. Pareciam os duendes do Natal! O
que andariam a fazer? Porque punham o Obélix, aquele
obeso, junto de crianças tão famélicas? Tinha a
certeza que ele lutaria contra os Romanos do mundo
inteiro para acabar com a fome! Ele conhecia a taxa
Tobin e os mapas da geografia da fome no mundo!
Porque é que o Peter Pan não roubava todos os meninos
e meninas que trabalham? Enquanto voava, não poderia
ver aquela menina egípcia, de olhos de azeitona,
que produzia tapetes em vez de estar na escola?
Não via o rapazinho que desconhecia a sensação de
tocar, com os pés, as bolas de futebol que fazia
com as mãos? Porque não os levava com ele para a
Terra do Nunca? Não seriam lá mais felizes? O Homem
Aranha, aquele rapaz ágil, parecia cheio de força
para esmagar, para sempre, a hipocrisia dos abusadores
de crianças indefesas! Como era horrível aquela
garra que as puxava! O Lucky Luck tão sério! Pensaria
ele em devolver a infância àqueles que eram soldados,
a sério, em vez de brincar com soldadinhos de chumbo
e bailarinas apaixonadas? E aquela ali não era a
Pantera cor-de-rosa? Andava como sempre, muito elegante,
em pèzinhos de lã. Evidente, só assim era possível
entrar nas casas e roubar as imagens feias das crianças
e das mulheres humilhadas e batidas. Como era bonita
aquela força enorme que saía da terra! O Pinóquio
também iria ajudar mais pessoas? A fazer o quê?
A acabar com a mentira e o desleixo quotidianos?
Será que o Dunga também não quer ver mais a gaguez
dos oprimidos? E a Minnie vai promover a auto-estima
dos que nem sabem o que isso é? Ah! O preferido
é o Dumbo! Quem disse que já não é possível sonhar?
Quem disse?
Muito tempo depois, quando aquela azáfama acabou, os
jovens desapareceram novamente pelas janelas. Deviam estar
tão cansados! Aquilo seria sobre o Natal...? Só então
Alice se lembrou do tema do trabalho que já esquecera!
Teve uma ideia: escreveria sobre aquela exposição! A professora
sabia que ela não gostava de alguns heróis de banda desenhada,
sabia que ela não gostava das lamechices natalícias e
também sabia que a solidariedade e o respeito pelos direitos
humanos hão-de transformar o quotidiano num Natal permanente...
Ana Maria Pessoa
Natal 2002
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