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Entrevista Público - Álvaro Siza Vieira

Senta-se no sofá e ao longo da conversa vai ficar cada vez mais reclinado, derramado sobre o veludo verde do gabinete de Jorge Sampaio, em frente do quadro do marquês de Pombal com os arquitectos da reconstrução de Lisboa. Sabe que dentro de poucas horas a Câmara de Lisboa vai recusar o remate que propôs para a Avenida José Malhoa e deixar passar o edifício que ele próprio compara a uma fraca imitação de La Defense. Mas não está zangado nem azedo. Está descontraído, disponível, faz comentários em volta da conversa.
É neste tom que fala de janelas, num momento em que sabe que o gravador está desligado. “Um projecto começa por ser apenas a ideia de um volume e é a coisa só se complica quando começamos a meter-lhe janelas. As janelas mudam, condicionam tudo. Por isso é que as bibliotecas foram sempre, em toda a História, grandes peças de arquitectura. Não têm janelas.”
Fala baixo e devagar, por vezes cala-se, pensa completa a resposta, um pouco como se falasse sozinho. Há um mistério no meio disto: como é que consegue ter sempre um cigarro acesso nas mãos?

Público – Como concilia tantos projectos em simultâneo, alguns fora de Portugal? Estive a tentar fazer, de memória, um levantamento” e assim, de repente, lembrei-me disto tudo: o Chiado, incluindo uma estação de metro e o Grandella, o plano da Praça de Espanha, incluindo a Companhia de Seguros Lusitânia e a fundação Cargaleiro, o plano da Avenida José Malhoa, a Escola Superior de Educação de Setúbal, a Faculdade de Arquitectura do Porto, o cinema Condes, concorreu à Biblioteca de Paris, fez o pano de Macau.

Álvaro Siza Vieira – Os trabalhos não se fazem na totalidade ao mesmo tempo. Ter um trabalho para fazer não quer dizer que se esteja a trabalhar nele. Para dar um exemplo: para o Condes fiz um estudo prévio e uma maquete, visto que nos projectos para a Avenida da Liberdade, de acordo com o novo plano, primeiro há uma proposta que é apreciada por uma comissão e só depois da aprovação por uma comissão e só depois da aprovação é que se pode avançar.

Público – O Condes está então em banho-maria?

R. – Agora eu estou à espera, entram na minha preocupação pessoal outros projectos. Não quer dizer que o condes pare, porque há uma equipa que continua a trabalhar no plano, embora não haja a certeza de que ele seja aprovado.
Nós temos uma quantidade x de projectos, nenhum escritório vive de um projecto só. Eu nem sequer tenho um número exagerado. O que eu tenho mantido é uma ligação directa de autoria e de controlo sobre os projectos que aceito. Não me interessa ser administrador de uma grande empresa, gerir as encomendas através das equipas, até porque como administrador sou péssimo.

Público – A concepção inicial é sempre sua?

R. – Depende muito. Há casos onde há logo um trabalho inicial a fazer e que alguém da equipa desenvolve. Se for um terreno complexo do ponto de vista da topografia, é necessário logo fazer uma maquete do terreno. Se for complexo quanto a número de metros quadrados e articulação das partes do edifício, pode uma equipa começar a estudar isto em pormenor. A decisão é sempre minha. Tenho trabalhado sempre assim são trabalhos de autoria, não são trabalhos de empresa.

Público – Diz que é um mau administrador, mas isso tudo implica controlar os calendários para encaixar as coisas umas nas outras.

R. – Sou um bocado como aquelas pessoas que têm a secretária muito desarrumada, mas controlam essa desarrumação. É preciso gerir bem o tempo para que se possa articular dentro dos ritmos diferentes de desenvolvimento dos projectos, para que se possa atender aos prazos. Há projectos que encravam porque as aprovações demoram muito tempo, a gente julga que vai ter uma equipa a trabalhar continuamente num projecto, mas realmente tem que parar para pegar noutro e depois, se calhar, a possibilidade de sequência daquele vem na pior altura para o outro. É muito difícil, não é um jogo planificável rigorosamente, implica muita intuição, a capacidade de quase improviso.

Público – Tem feito trabalhos de dimensões completamente diferentes, desde objectos a edifícios, e até planos de ordenamento, em sítios completamente diferentes e com programas completamente diferentes.

R. – Isso é uma opção minha. Há escritórios vocacionados para certas áreas em que se especializam. Pessoalmente essa linha não me interessa e penso que, para fazer um trabalho de pequenas dimensões, é necessário passar por um trabalho de grandes dimensões e vice-versa. Isso dá uma sensibilidade, um domínio, uma visão de escala muito maior.
Quem faz coisas pequeninas tem tendência a ser pequenino, quem faz coisas grandes tem tendência a ser pouco sensível ao detalhe, porque lida com grandes temas, grandes áreas. Para atingir um equilíbrio na profissão é necessário ter a experiência das várias escalas das várias dimensões.

Público – Continua a desenhar objectos e mobiliário?

R. – Procuro ter tempo e tenho-os feito. Há uns objectos que estão em produção. É um pouco pelo mesmo também: a noção da escala, do espaço, grande ou pequeno, está relacionada também com o objecto, com o móvel. Tudo é complementar e relacionado. Por outro lado, desenhar um móvel é bastante gratificante como complemento de actividade. Um edifício normalmente leva muitos anos a fazer, é um processo longo. Com um objecto, numa semana pode-se fazer o protótipo de uma cadeira e depois vê-la. E ver a obra acabada é uma experiência muito importante para nós. É tão importante como para um pianista ouvir as notas.

Público – Há a diferença de dimensões, mas há também a diferença entre os locais. Faz trabalhos em lugares muito diferentes e diz sempre que tem de sentir o ambiente. Chega a uma cidade onde é um ET para preparar um projecto. Como é?

R. – Há processos diferentes de contacto. Há o conhecimento da atmosfera de uma cidade, problemas específicos, aspectos humanos, contactos pessoais. Acho que a atenção e capacidade de percepção e compreensão se agudizam, porque o estímulo é muito forte. Há a curiosidade natural de ver um meio novo, um certo encantamento. Todas as cidades são bonitas, até as feias.

Público – Não há nenhuma terrível?

R. – Não. O Porto é a cidade mais incómoda que eu conheço, mas eu gosto muitíssimo da cidade do Porto. Não há cidades feias, há cidades difíceis. Por exemplo Madrid não é uma cidade fácil. Durante muito tempo eu passava por Madrid e interessava-me pouco, gostava era de Barcelona. Mas depois tive trabalho lá, tive um contacto maior e andei com gente que ma mostrou. É uma cidade difícil, a gente não se apercebe da sua qualidade de imediato, não é propriamente um espectáculo. No entanto, é uma cidade com um enorme encanto, uma cidade densa, sólida.
De maneira que isso constitui estímulo muito forte, agudiza a capacidade de percepção, desencadeia as ideias, no fundo. E a ideia é o importante na arquitectura. Depois, é importante transformar as ideias em coisas que venham a ser parte de um corpo vivo que é uma cidade.

Público – Em Lisboa, por exemplo, conhecia a cidade, mas nunca tinha feito nenhum trabalho até ao Chiado. Começou logo com um trabalho tão importante e com tanto impacto...

R. – E conhecia muito mal a cidade. Conhecia de dar aqueles passeios clássicos, de ver os museus...

Público – Mas como é que faz? Começa por passear?

R. – Em Lisboa, tenho muito pouco tempo para passear, neste trabalho há muito de reuniões que coordenam uma série de donos de obra e projectistas. Não tem dado para passear como eu gosto, sem programa, que é uma das formas de a gente se aperceber da cidade, vaguear, perder-se.

Público – É isso que costuma fazer?

R. - Quando posso, quando tenho tempo para me perder. Já me tenho perdido nalgumas cidades.
Lisboa é uma cidade extraordinária. É o mais variada que se possa imaginar. Há bocados da cidade completamente diferentes uns dos outros, bocados muito próximos, o que vem muito da topografia da cidade, ondulada, o que cria distâncias não pela extensão no mapa, mas distâncias reais. Por exemplo Alfama e a Baixa são mundos diferentes, ou o Bairro Alto. Mas continuo a conhecer muito mal a cidade.

Público – Tem trabalhos em Lisboa em zonas completamente diferentes. Meteu-se no ambiente do Chiado, que era quase um não ambiente, e depois na Avenida José Malhoa, que era um monte de projectos de edifícios de escritórios.

R. – Mas o Chiado é uma zona da cidade tão viva como era antes do incêndio. Já não era o centro do império, como foi noutros tempos. Mas, mesmo destruído pelo incêndio, é uma zona muito viva, todos os bordos do buraco da rua Nova de Almada mantêm aquela vida, há lojas, há cafés, e sobretudo há o fluxo de passagem igual ao que era, se não maior. E depois há um outro tipo de vida diferente, que são os operários da construção civil, os encarregados, gente que na maior parte é de fora de Lisboa, imigrantes. É um meio humanamente muito rico, tal como está, e nada o destruiu, não há um vazio.

Público – Quando as obras acabam, fica com saudades dessa fase de crescimento de estaleiro?

R. – Sou capaz de ter de vez em quando, mas nós partimos para outra, há outras obras.

Público – Como é que são os últimos dias de uma obra?

R. – Ah, nos últimos dias é terrível dias é terrível, porque nós acabamos por ser empurrados para fora da obra. Mandem lá embora os chatos dos arquitectos. Ou o empreiteiro diz: “Acabe lá isso de qualquer maneira, quero lá saber, eu quero é acabar.” Isto é uma das constantes dos dias de hoje. Ainda me lembro...e de maneira nenhuma sou saudosista nem nostálgico, e muito menos em relação aos anos 40,meados dos anos 50, mas numa obra pública, fosse boa ou má arquitectura, era um ponto de honra acabar bem. Havia uma fiscalização muito exigente à boa qualidade da construção, do material, mas também ao bom acabamento. Pinturas bem feitas, uns rebocos maravilhosos. Havia os materiais adequados, havia essa grande preocupação de responsabilidade. Bem sei que se fazia pouquinho, não era nada como a pressão de hoje. Mas realmente, hoje, chegou-se a um ponto em que o grande inimigo do arquitecto e da qualidade é o dono da obra, não é o empreiteiro.

Público – Mesmo sendo o Estado ou principalmente sendo o Estado?

R. – Principalmente sendo o Estado. Para as instituições ligadas às administrações, quer central quer local, não há dúvida de que, tirando excepções – como Belém, por exemplo – a coisa é assim: empurrar o arquitecto. É fundamental fazer este revestimento aqui, mas não se faz porque custa dinheiro, há desautorizações do projectista, tudo isso acontece. Nós temos de fazer uma luta para conseguir um mínimo de qualidade, coisa que logicamente, é do interesse do dono da obra. E às vezes nem é por questões de dinheiro é porque é preciso inaugurar no dia tal.

Público – Nesse género, o caso mais grave será o da Faculdade de Arquitectura do Porto?

R. – Nesse caso também houve todos esses problemas, mas a obra está praticamente concluída. Só que aí é mais grave. O edifício foi feito de acordo com um plano, que é o plano da Universidade, com o acesso por determinada rua. Com o edifício concluído, afinal a rua não é deste lado, mas exactamente do lado contrário. Parece uma anedota, mas é o que se passa. Além disso, foi aprovada há quatro anos e agora a obra chegou ao fim, mas não tem água, nem luz, nem aquecimentos, nem arruamentos.
O pólo universitário foi planeado pela própria Universidade, em colaboração com a Câmara. E quem se empenha na modificação é a Universidade.

Público – É uma situação aberrante.

R. – Completamente. Deste exemplo nem vale a pena falar porque, de facto, é aberrante. Referia-me a coisas que são usuais numa fase como actual, de súbita pressão de construção, uma enorme aceleração na construção, sobretudo de equipamentos. O sistema de produção e de controlo rebentou, não é minimamente eficaz, e eu aceito isto como uma fase transitória.

Público – No Chiado também são problemas desses género que se colocam?

R. – No Chiado há problemas mas de ordem jurídica com algumas das obras e há problemas de coordenação, nomeadamente no que se refere a infra-estruturas, que são problemas latentes da cidade.
Quando tomei conta do Plano do Chiado a primeira coisa que fiz foi propor, reunindo os diversos serviços camarários e exteriores, como a EDP, a construção de uma galeria acessível que permitisse, dadas algumas indefinições do programa, quando necessário, fazer as ligações. Era uma solução flexível e impediria de futuro, as covas para meter o telefone e essas coisas que nós conhecemos. Estou convencido de que não se vai realizar, por diferendos entre os vários serviços e, sobretudo, porque não está ainda neste momento definido qualquer tipo de infra-estruturas.

Público – Com uma irritação suplementar da sua parte.

R. – Bem, uma irritação não serve para nada. O que eu disse em determinada altura, e isto é relativamente recente, de há uns três ou quatro meses a esta parte, foi: ao diabo a galeria, que se faça de qualquer maneira, mas que se faça. Para não acontecer, eventualmente, o que acontece com a Faculdade de Arquitectura – edifícios prontos sem infra-estruturas.
Como sistematicamente acontece com a habitação social. É normal nos chamados bairros económicos construir casas sem ruas.

Público – Quando o engenheiro Abecassis o convidou para dirigir a reconstrução do Chiado ou quando lhe propõem um grande projecto, fica apavorado?

R. – Apavorado não. Apavoradas ficam as prima-donas, as cantoras de ópera, quando entram no palco. Mas nós não somos prima-donas. Medimos a dificuldade que há em cada problema e às vezes não aceitamos trabalhos por isso. O convite para o Chiado obrigou-me a pensar muito. De resto, não aceitei logo, pedi um tempo para medir a possibilidade e organizar-me para isso, para a dimensão, para a complexidade, as negociações. Há trabalhos aparentemente ingratos que podem interessar, trabalhos em condições não muito boas que podem não interessar, depende.

Público – Quando avalia a dificuldade, normalmente avalia por baixo ou por cima? Por exemplo, no Chiado previa estas dificuldades todas?

R. - Eu realmente avalio por cima, sou muito pessimista. A avaliação é quase dizer: isto é um buraco dos diabos, não estou virado para aí, vai ser uma série de maçadas. Ás vezes demarco-me, não aceito.

Público – O seu papel, no Chiado e principalmente na José Malhoa, na Praça de Espanha, tem também um lado político, uma relação com o poder e até uma certa dose de poder.

R. – Julgo que tenho mantido o sentido das proporções. Os arquitectos do Marquês do Pombal também não tinham o poder. O nosso poder é uma delegação de poder e é muito vulnerável, dependente. E é bom que se tenha isso sempre na cabeça para não fazermos coisas de que depois nos arrependemos. As posições radicais correspondem a um sentimento de poder absoluto e é-me perfeitamente claro que não o tenho.

Público – Sente-se bem nessa tentativa de consensos?

R. – Sinto-me bem se esses equilíbrios levam a uma evolução que eu considero correcta, no sentido de criação de condições, criação de ambiente. Há um pouco a ideia de que o plano Malhoa é um remendo numa manta de retalhos, a ideia de que é um plano muito pouco ambicioso. Creio que é uma resposta realista aos problemas que se punham e que não depende da qualidade arquitectónica de cada peça, mas que, na sua globalidade, propõe uma imagem autêntica da maneira como se está a transformar a cidade, e uma imagem viável em termos de sobreposição de interesses, e coisas impostas, com complexidade. Sendo uma operação de negociação, criação de consensos, remendos, conduziu, na minha interpretação, a um plano arquitectónico de que eu não me envergonho nem considero um remendo.

Público – A sensação que dá aquilo que está a dizer é que tem imensa paciência. Numa entrevista que deu à revista da Escola Superior de Educação de Setúbal, contou que a primeira obra que fez foi um galinheiro e que se zangou com o dono. Continua a zangar-se com os donos dos galinheiros?

R. – Eu era muito novo e o galinheiro que eu queria fazer era muito feio.

Público – Por que é que se zangou?

R. - Eu sei lá. Eu queria um galinheiro cilíndrico e o cilindro era esquisito para galinhas, qualquer coisa deste género. O negociar, o diálogo, não põe entre parêntesis o conflito, antes pelo contrário. Quando queremos entrar em relação com outros, seja em que campo for, a relação assume também aspectos de conflito. Posso ter explosões de mau génio, mas isso faz parte de uma abertura ao diálogo. É uma fase. Uma família que não discute e onde há sempre uma serenidade visível é uma família extremamente doente. As relações fazem-se incluindo o conflito. Não vejo como é que possa haver um arquitecto que nas suas relações profissionais seja sempre cordato. Como também não compreendo o contrário, uma pessoa que esteja sempre em discussões.

Público – Quando faz um móvel, não tem de dar explicações a ninguém, a não ser que faça uma cadeira onde ninguém se possa sentar...

R. – Já fiz algumas em que ninguém se pode sentar.

Público –... mas na arquitectura há imensas condicionantes. Isso não é penoso, não se sente constrangido? Não se incomoda por não poder fazer um galinheiro que é um cilindro, ou quando faz um projecto para uma casa e o dono da obra diz que não quer nada assim?

R. – Um galinheiro não tem que ser um cilindro e isso é um episódio de juventude. É sempre possível, mesmo com conflitos, há sempre possibilidades. Muitas vezes há coisas a que nós, porque contradizem o que estamos a pensar, e no dia seguinte é capaz de ser o início de uma via diferente mas rica. Quanto mais o que fazemos assimile ideias opostas, mais rico é.
Uma obra de arquitectura densa e de grande qualidade ultrapassa o problema do gosto e inclui respostas a muitas coisas. Há, portanto uma certa ambiguidade na forma do edifício, na atmosfera que dá um edifício, porque necessariamente inclui uma quantidade de ideias e de objectivos contraditórios.
Uma obra de arquitectura não é uma coisa que se define em duas palavras, dizendo “é assim, porque...” Os próprios arquitectos utilizaram “slogans” simplificativos ao defender as suas ideias, há muitos conhecidos: “a função faz a forma”, ou outros que disseram “a forma faz a função”, noutra época; ou “a arquitectura nasce de dentro para fora”. O Mies van der Rohe dizia: “less is more”, menos é mais; o Venturi recentemente na luta de ideias, dizia ”less is boring”, menos é aborrecido.
No fundo, a construção do projecto inclui as coisas mais contraditórias e é exactamente pô-las em relação que define a qualidade: formar uma síntese a partir de ideias opostas. Esta janela fica mal lá fora, na fachada, mas é precisa cá dentro. Todas as transformações que se fazem para que ela cumpra a sua função de iluminação do interior e fique bem na fachada, tudo o que é preciso fazer em torno disto, mais tudo o que é preciso para que a casa ventile, para que o sol não bata com demasiada violência, são tudo coisas opostas que é necessário utilizar, são os ingredientes da arquitectura para chegar a um resultado claro.

Público – Quer dizer que, quando pensa inicialmente um projecto, conta com as contradições que aí vêm?

R. – Os constrangimentos que existem são instrumentos, são a forma de fazer a arquitectura, e é assim que os encaro. Ainda agora tive um problema. Um senhor quis construir um grupo de casas num terreno maravilhoso, perto de Paris, e convidou não sei quantos arquitectos de vários países e disse-nos: “Vamos fazer casas, estão aqui os lotes de terreno, tiramos à sorte o que fica num ou noutro, fazem como quiserem, o dinheiro é este, é dinheiro suficiente, as casas nem vão ser habitadas, o que eu quero é plena liberdade”. Julgo que todos os arquitectos disseram: ”Mas é que nós dessa liberdade não queremos.” Essa liberdade significa na realidade um vazio total, não termos essa riqueza que anima as pedras para construir as fachadas, que são feitas de desejos, de contradições, de repúdios, de apoios. Isso é quase um trabalho impossível.

Público – Por isso é que arquitecto Souto de Moura disse, num colóquio, que o arquitecto Siza Vieira tem uma relação muito intensa com as obras, uma relação quase erótica?

R. – Não notei sintomas de erotismo na minha relação com nenhuma obra. Era bom e tal, mas não bem assim. É uma imagem muito bonita e estou a percebê-la, é de um amigo e de um grande arquitecto. É uma maneira indirecta de dizer uma relação que eu conheço muito bem com uma obra. Quando eu falava em todo este mundo de contradições e de desejos que é necessário, referia-me a uma relação muito intensa, um assumir muito intenso dos problemas da construção de uma obra. Porque, sem isso, o exercício da arquitectura é uma coisa chatíssima, aborrecidíssima. Se não há isso, essa intensidade, esse desejo, é um trabalho rotineiro: tem que se ir à câmara, pedir as licenças, preencher papéis, fazer desenhos, tracinhos, ou ir para o computador e bater os textos.

Público – Quando resolveu ser arquitecto sentia que ia ser assim ou pensava que a arquitectura era ter grandes ideias e fazer o que queria?

R. – A ideia que tinha era de tirar o curso de escultura, quando era catraio. Para não ter grandes conflitos de geração, porque meus pais não gostavam nada, pensei em entrar no curso de Arquitectura e depois mudei pacificamente. Entrei para uma escola que tinha Pintura, Escultura e Arquitectura, como primeiro ano praticamente comum. Nem era ainda escola superior, era só a Escola de Belas artes do Porto, depois foi crescendo. Não havia ligações familiares à arte, houve um fotógrafo, daqueles pioneiros, mas não creio que tenha tido qualquer influência nisso. Depois comecei o curso de Arquitectura e acabei por não mudar.

Público – Fez bem?

R. – Ah, fiz! Eu gosto, continuo a gostar. Acho que fiz bem.

Público – Vai trabalhar agora, na estação de Metropolitano, com o Ângelo de Sousa por proposta sua. Já alguma vez trabalhou com ele?

R. – Não nunca trabalhei. O Metropolitano tem entregue o trabalho a vários artistas, sempre com muita preocupação de qualidade, e eu sugeri o Ângelo de Sousa porque gosto muito do que ele faz, porque corresponde à ideia que eu tenho de colocação de obras de arte como parte da arquitectura.
É um campo que não tenho praticado. A arquitectura em si já é uma obra de arte e não tem feito muita falta na maneira como eu tenho pensado os edifícios. Mas também não tive oportunidade. Nas escolas que estou fazer, quer a Faculdade de Arquitectura do Porto quer a Escola Superior de Educação de Setúbal, gostaria de ter uma verba para gastar em obras de arte e poder propor um artista ou dois, pensar na sua participação num ou noutro espaço. Mas essas verbas não foram facultadas, não há dinheiro para a arte. Bem, eu lá faço arquitectura, também acho que é arte e, portanto, alguma arte têm a contragosto.

Público – Alguns arquitectos dizem que o arquitecto Siza Vieira já quando andava na Faculdade era o maior, tinha qualquer coisa de diferente. Outros detestam o seu trabalho. Demorou muito até ao reconhecimento público, mas agora é uma figura consagrada. Como é que se sente no meio disso?

R. – Uma pessoa tem que se distanciar um pouco dessas coisas. É verdade que as pessoas me reconhecem na rua, isso por vezes até é bastante incómodo. Às vezes vou a entrar num restaurante e alguém que venha comigo, atrás, depois diz-me que se viraram não sei quantas cabeças. Eu não vejo, procuro ir com o olhar fixo no infinito.
Mas não há uma visão de unanimidade, o que até seria insuportável, seria suspeito. Neste momento, estou com extremas dificuldades para aprovar alguns projectos. O clima normal em que me movo não é de reconhecimento, mas de dificuldade.

Público – Mas gosta, precisa de que gostem de si?

R. – Alguma coisa nós precisamos, mas também não precisamos de uma multidão. Às vezes basta que gostem duas ou três pessoas, no limite bastará uma. Na verdade, o que se passa é mais complicado: uns gostam, outros não gostam mesmo. Também se não fosse assim, isso significaria uma certa morte prematura, no meu caso tenho 58 anos. Porque as pessoas, por vezes, contam que A ou B faça uma coisa tranquilizante, que já viram, que gostaram. E se não é assim, ficam em pânico.

Público – Já lhe aconteceu dizerem-lhe: não era nada disso que estávamos à espera, queremos uma coisa como aquela que fez ali?

R. – Isso acontece-me quase constantemente. No Chiado houve reacção em meios profissionais ao facto de ir conservar as fachadas. Disseram que era uma atitude conservadora, houve uma espécie de desapontamento. Quando fiz o projecto de Berlim. Felizmente, não há esse apaziguamento, seria um sintoma muito mau.

Público – Vai continuar a fazer coisas que as pessoas não esperam?

R. – Não é com esse sentido. As coisas é que apresentam problemas diferentes e, portanto saem diferentes de outras eventualmente, como imagem, as pessoas esperam. A arquitectura tem esse aspecto frágil de expectativa, de atenção à imagem, mas a arquitectura não é uma imagem, não é uma escultura. A arquitectura é uma coisa que engloba vida, espaço interior, contradições. Contextos diferentes dão edifícios diferentes. Embora eles não sejam tão diferentes como isso.
Para conhecer um edifício não basta olhar e dizer “este é assim”. Um edifício é uma coisa onde se vive, é uma coisa de dia e outra de noite. A impressão da imagem é uma coisa muito frágil, muito mais frágil em quem não tenha uma preparação especializada. É uma reacção afectiva, subjectiva, e um edifício ultrapassa a afectividade e a subjectividade. Com uma música nós podemos não gostar e, depois, ouvimos algumas vezes e passamos a gostar. Eu lembro-me de edifícios que achava horríveis há 30 anos e que, neste momento, acho edifícios de grande qualidade.

Público – Acha que é uma estrela?

R. – Ah, não. Naturalmente, acho que não. Sou um introvertido, como é que posso ser uma estrela? Uma estrela tem um desejo de extroversão. Eu pessoalmente não sou, humanamente não tenho o perfil psicológico de uma estrela, de maneira nenhuma. Passo despercebido em toda aparte. Agora, como a televisão me fez duas entrevistas, é que já não.

 

 

Escola Superior de Educação de Setúbal
Data da última actualização: 16-01-2008
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