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Primeiras e segundas impressões


(sobre a arquitectura da
Escola Superior de Educação de Setúbal,
Projecto de Álvaro Siza Vieira)

Ao comentar um passo de Schopenhauer em que este filósofo afirma que a arquitectura só existe enquanto Arte contra o peso e o suporte que a definem, contra a sua própria materialidade afinal, Francesco Dal Co escreveu o seguinte:

(...) De facto, se tivermos em consideração mesmo a mais articulada construção espacial, a sua experiência só é possível se o observador possuir a capacidade de lhe atribuir um significado representacional que transcenda os factos objectivos da relação estabelecida entre ele próprio e o ambiente em causa (...) *.

Por outras palavras: só se poderia experimentar a arquitectura referindo-a ou a realidades que lhe são exteriores (memórias pessoais, imagens) ou a outros exemplos arquitectónicos. Em ambos os casos, a experiência da arquitectura assentaria num raciocínio elaborado de modo a relacionar a experiência concreta e pessoal de um determinado ambiente construído com outras experiências ou saberes. A tese formulada por Dal Co parte do pressuposto (aceitável) de que a relação primordial e imediata estabelecida entre o Sujeito que experimenta um edifício e este edifício em si é, pelo contrário, de carácter não representacional. Essa relação não constitui uma verdadeira experiência porque se situa num domínio (o do “instinto”) não formulável em linguagem e, portanto, incompreensível.

Suponhamos, contudo, que existe de facto esse primeiro momento no qual um edifício nos afecta o corpo, os sentidos e os sentimentos pelo clarão da sua presença material em bruto, antes mesmo de nos pormos a pensar sobre ele e sobre as relações que mantém com outras experiências nossas ou com as memórias e imagens que suscita. Suponhamos que há um Primeiro momento, ”Instituto” por assim dizer.

A consideração deste momento puramente sensorial da experiência (arquitectónica ou outra) só é possível, bem entendido, à custa de uma abstracção. De facto, a maneira como o corpo e o espírito do passeante são afectados primordialmente pelo ambiente está desde logo contaminada por memórias, culturas, outras experiências. Ou seja, é discurso, sabedoria, memória, comparação, desde o primeiro instante.

Creio que a especificidade mais radical da arquitectura de Álvaro Siza (aquilo que por vezes se designa pela sua “força poética”) reside no modo como provoca uma “redução” deste género, uma espécie de suspensão do raciocínio, forçando violentamente uma experiência “primitiva”, “originária”, da arquitectura.

Especialmente depois da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (obra do mesmo género da Escola Superior de Educação de Setúbal), os Edifícios de Álvaro Siza abrem como que um súbito abismo na consciência através do qual se entrevê, por momentos, o processo de origem do Mundo construído. Face a este momento, o espírito fica desarmado, reduzido a uma espécie de infantilidade (ou ingenuidade) espantada.

Recordo com grande nitidez a manhã muito quente de Verão em que percorri o edifício da ESE (ainda “em tosco”) pela primeira vez. Fiquei profundamente surpreendido comigo próprio ao sentir-me reagir do mesmo modo (exactamente do mesmo modo) como reagira um ano antes ao passear, também pela primeira vez, nos pavilhões da FAUP: parado no começo da galeria suspensa que percorre o corpo Sudeste da ESE, apanhei-me de repente a rir.

Ria-me exultantemente, como se explodisse. Mas também com surpresa e divertimento, à maneira de um miúdo que vê um balão colorido fazer-se repentinamente ao voo. Depois fiquei estupefacto, sem pensamento, sem linguagem – e foi num silêncio quase comovido que percorri a galeria e o resto do complexo.

Com excepção daquilo que experimentei perante alguns quadros de um pintor que vale a pena nomear aqui, e frente a certas paisagens, há muito tempo que nenhum facto me afectava daquele modo. Desde então, sempre que escrevo sobre a arquitectura de Álvaro Siza (ou penso no projecto de uma pequena capela de Vítor Figueiredo), não tenho feito outra coisa senão procurar um discurso para o meu riso. O que se segue é mais uma tentativa de o encontrar.

Suponho que o facto de me rir ocorria já num segundo momento, como resposta conceptual (ou melhor, resultante do desconforto da consciência) ao in formas arquitectónicas sobre os meus sentidos. Ri-me antes de procurar razões para esse impacto.

O que me surpreendeu foi a distância existente entre formas arquitectónicas e aquilo que me é sempre banalidade do preenchimento de uma função. A galeria suspensa onde me encontrava, por exemplo, percorre até ao fundo um longo espaço longitudinal não tocando na parede que o separa do exterior; esse espaço é iluminado por uma série de janelas que vão descendo pela parede abaixo espalhando a luz simultaneamente pelos dois pisos; não há duas fiadas de vãos, uma sobre a outra, ou uma única fiada rigorosamente alinhada; as janelas, ao descerem, dão ao espaço uma enorme profundidade; rompem-lhe a escala e as dimensões através da luz, fazendo com que a galeria “flutue” num espaço de definição incerta. O recurso às janelas que descem é completamente inesperado no sentido de não habitual, mas também porque está de tal modo para além das possibilidades que podíamos imaginar que nos faz ver e sentir tudo de novo, tornando-nos inocentes, principiantes.

Sucede algo semelhante com os pilares que sustentam a pala que corre em volta do pátio central: a sua forma surpreendente (onde depois se reconhecem outros pilares ou formas usadas por Siza numa loja de Lisboa ou em Haia), os dois pilares que arrancam de uma base única erguendo-se inclinados provocam o mesmo efeito de rompimento entre a forma e a função que cumpre.

Lembro-me ainda da entrada, “abatida” e “deformada”, da caixa de escadas de planta ogival, do grande espaço virado a Sudoeste cuja cobertura está esburacada por um óculo oval, da escada que daí arranca parecendo perder-se na cobertura, da grande janela aberta na biblioteca que, ao dar para uma passagem estreita, só acolhe luz zenital funcionando como um enorme écran reverberante.

Cumprir uma função é também fazer referência a um sítio (ou “integra- -se” nele, como se costuma dizer). Inesperado na ESE é o modo como o complexo volta as costas à pendente e se encaixa numa zona baixa, enovelado em volta de um pátio do qual não se vê a paisagem.

Teríamos então o que torna a arquitectura de Álvaro Siza surpreendente seria a ultrapassagem da funcionalidade arquitectónica em favor de algo mais abstracto situado no domínio da forma em si. Sucede, todavia, que todas as formas da ESE a que fiz referência são funcionais: as janelas iluminam, os pilares sustentam, as escadas dão acesso, o pátio está abrigado do vento, etc.

Recordo então certas palas que dão sombra a janelas da FAUP ou do jardim infantil de Penafiel (entre outros casos): a sua forma é absolutamente literal; se para orientar a luz num determinado sentido era necessário entortar a pala ou torná-la assimétrica, foi isso que se fez. Precisamente isso. E também aí senti a brutalidade da surpresa não porque houvesse uma diferença ou distância entre a forma e a função, mas porque havia, pelo contrário, uma literal coincidência entre elas.

O Belo resultaria aqui do útil. Mas, neste caso, existiria como que um rompimento entre a forma propriamente dita e o seu efeito estético sobre nós; o facto de considerarmos favoravelmente uma determinada pala, por exemplo, deriva de que ela nos surpreende no modo como “responde” à sua função e não de que a pala em si seja bonita, independentemente da função que cumpre.

O que sucede sempre na arquitectura de Siza, portanto, quer haja correspondência entre a forma e a função, quer ela pareça não existir, é que a distanciação entre a utilidade que reconhecemos na arquitectura e o modo concreto como ela em cada caso se afirma resulta afinal na mais íntima solidariedade entre os dois aspectos. Em qualquer dos casos, o ponto de partida da experiência desta arquitectura reside no reconhecimento do facto de que ela não é uma actividade puramente representacional ou formal tendo as suas possibilidades circunscritas pelo que funciona. Qualquer pessoa sabe (e sente) de imediato que a arquitectura é, antes de mais, um procedimento técnico destinado a cumprir determinadas funções com meios muito concretos. As funções primordiais são as de abrigar, dar acesso e iluminar; trata-se de limitar e cobrir espaços, de delinear percursos, de abrir vãos, criar lanternins, dispor lâmpadas, etc.

Mas a prisão à funcionalidade, longe de limitar a pregnância e o significado das formas, exalta-os. Sem a consideração da utilidade não pode haver uma experiência estética específica da arquitectura – que se situa, por isso, num domínio diferente do da Arte.

O sentimento da ligação necessária entre forma e função criado pela arquitectura de Álvaro Siza na ESE resulta, paradoxalmente, de uma antagonização dos dois termos, um procedimento essencialmente conceptual que cria no passeante uma questão que é simultaneamente da ordem do instinto (do corpo) e da inteligência (do raciocínio).

Não se trata, de facto, de uma experiência simplesmente “corporal” da arquitectura. Reconhecer a utilidade de certas formas não depende do modo como nos afectam pelo seu peso, a superfície ou volume que ocupam, a sua cor, a sombra que projectam, etc. A arquitectura de Siza não é “expressionista”, quer dizer, não é concebida como uma espécie de “máquina” de produção de efeitos corporais.

O procedimento projectual de Álvaro Siza reconduz deliberadamente o passeante a um estado “primordial” do arquitectar ao recusar-lhe, pela evidência das formas, a experiência de uma função linearmente “cumprida” (que o tranquilizaria numa ideia puramente técnica da arquitectura), afastando-o ao mesmo tempo, através da “estranheza” dessas formas, do conforto de uma apreciação evidentemente artística.

Este procedimento passa pela recusa de qualquer problemática contemporânea do Belo. Na estética actual, o Belo é uma questão de gosto e de formação do gosto: qualquer forma pode ser bela, dependendo sempre da apreciação subjectiva do artista e do observador. Não sucedia o mesmo no que respeita à Arte antiga para a qual existiam referências exteriores ao campo próprio da estética: a realidade, uma história a contar, etc. Na Arte antiga podia existir um rompimento entre forma e função e é sempre mais ou menos com isso em mente que se distingue classicismo (acordo “harmonioso” entre forma e função), maneirismo (desajuste), barroco (exponenciação das formas).

As formas da ESE, ou de outros edifícios de Álvaro Siza, não possuem a proporção e a harmonia que advêm de uma resposta esteticizada à função (ou seja, não participam da compleição clássica), nem a expressividade que lhes adviria do desejo de afectar sentimentalmente o observador (quer dizer, não são “românticas” ou barrocas), nem tão-pouco evidenciam a sua própria autonomia relativamente à função, como é característico do maneirismo. Não creio que seja útil pensá-las em nome de uma qualquer destas teorias. De facto, a arquitectura (esta arquitectura, em todo o caso) situa-se aquém (ou para além) da Arte e o rompimento entre forma e função que nela se verifica não aspira a obter efeitos estéticos de harmonia entre ambos os pólos ou de expressividade formal.

Ao quebrar aparentemente a relação entre a função e a forma, a arquitectura obriga o passeante a ver e a compreender a especificidade de um método. Na arquitectura de Álvaro Siza nada é “natural” ou “evidente”. Cada pormenor chama a atenção para a tortura a que foi necessário submeter o betão de modo a afeiçoá-lo a um objectivo prático. Assim se dá a entender que “cumprir uma função” não é uma questão simples mas o produto de uma escolha complexa.

Este procedimento “conceptual” torna-se tão obsessivo e intrigante para quem o experimenta que acaba por evacuar da arquitectura a facilidade de um discurso de comparação com outras experiências e memórias, abrindo o “abismo” que referi há pouco. Trata-se de recusar artificialmente (deliberadamente, com esforço, sem naturalidade) tanto a “Arte” (a liberdade subjectiva das formas) como o “design” (a harmonia entre a forma e a função), de modo a restituir ao passeante a experiência “primordial” da construção do mundo, a da sua dimensionação, limitação e funcionalização. Só através deste procedimento (que deixa marcas de “fealdade” e “desconforto” nas formas arquitectónicas) podemos experimentar, por um fugaz momento, a Epifania do ambiente construído que surge perante os nossos olhos como se estivéssemos no primeiro dia da criação do Mundo. Nas paredes e nos vãos, nas galerias e escadas, nos pátios e passagens da Escola há como que um estádio de equilíbrio provisório encontrado pelas formas funcionais no tumulto arbitrário da procura de uma forma final. Na arquitectura de Siza, o Mundo não emerge para a Harmonia mas para a Utilidade. Emerge branco, limpo, liso anguloso, assimétrico, de formado. O passeante olha então, para o que foi feito e ri-se.

Não se espere, das galerias e salas da ESE, o bonito ou o puramente funcional. Espere-se o que se deve esperara: a Arquitectura, quer dizer, o Princípio.

Paulo Varela Gomes


 

 

 

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Data da última actualização: 16-01-2008
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